Partidos podem firmar pactos, pois representam seus eleitores; Poderes, não
O "pacto dos três Poderes" ensaiado por Toffoli, Rodrigo Maia eBolsonaro foi descrito como uma reedição dos pactos assinados no governo Lula, em 2004 e 2009. A interpretação apega-se à forma para ignorar a substância. Os pactos lulistas circunscreviam-se à criação do Conselho Nacional de Justiça e à reforma do Judiciário. Já o "Pacto pelo Brasil", nome cunhado no forno da novilíngua orwelliana, pretende reinventar a sociedade (reformas previdenciária e tributária) e o Estado (pacto federativo, administração pública e segurança pública). Seria a nossa versão da Moncloa: uma Moncloa ao avesso.
O Pacto da Moncloa —um acordo político e outro econômico, assinados em outubro de 1977— traçou o rumo da transição espanhola do franquismo à democracia parlamentar. Na foto histórica, estão os líderes dos partidos de direita (Manuel Fraga, da AP), centro-direita (Adolfo Suárez e Calvo-Sotelo, da UCD), centro-esquerda (Felipe González e outros), esquerda (Santiago Carrillo, do PCE) e dos autonomistas bascos e catalães. A reinvenção da Espanha, obra quase milagrosa, foi um pacto entre partidos, não entre Poderes. Sugiro aos três "pactuadores do Brasil" que estudem o evento do Palácio da Moncloa, uma aula magna sobre a arte da construção de consensos democráticos.
Os espanhóis fizeram uma grande transação. A economia herdada do franquismo, um capitalismo de Estado erguido sobre oligopólios, desfazia-se sob os golpes da inflação e do déficit público. As reformas modernizantes nas esferas fiscal e previdenciária envolveram a contenção temporária de aumentos salariais. Os social-democratas e comunistas aceitaram a pílula amarga em troca de reformas políticas que consagraram as liberdades de imprensa, associação e manifestação, além da criminalização da tortura e da despenalização do adultério. Na encruzilhada da reforma previdenciária, o Brasil teria transações significativas a realizar, se escolhesse inspirar-se na experiência da Espanha.
Partidos têm o direito de firmar pactos, pois representam seus eleitores. Poderes não têm esse direito, pois suas prerrogativas estão limitadas ao que prescreve a legislação. Maia nada pode assinar sem a anuência impossível do conjunto dos deputados. O caso de Toffoli é mais grave: sua mera presença numa reunião destinada a costurar acordos políticos indica uma disposição subversiva de submeter o Judiciário às conveniências do Executivo. Os ministros do Supremo fariam bem se proibissem ao presidente do tribunal a travessia da Praça dos Três Poderes.
O "Pacto pelo Brasil" é uma encenação tão pomposa quanto vulgar. Para decifrá-la, substitua o nome da pátria pelos de seus promotores. Bolsonaro, que não comanda nem mesmo seu partido, almeja terceirizar a responsabilidade de formação de uma maioria parlamentar pela reforma da Previdência. Maia tenta, apenas, desviar-se da mira dos canhões montados nas redes sociais olavo-bolsonaristas. Toffoli sonha galgar a posição de Moderador da República, aceitando trocá-la pela independência do STF.
O pacto espanhol de 1977 nasceu da necessidade de enterrar uma ditadura de quatro décadas. O esboço de pacto brasileiro emana de manifestações governistas que clamaram pelo fechamento do Congresso e do STF. A Moncloa deles orientava-se pela bússola da democracia; a nossa reaviva o discurso autoritário da "harmonia entre Poderes" para anular os contrapesos institucionais ao Executivo.
Na Espanha que rompia com o franquismo, as lideranças colocaram o interesse nacional acima dos interesses partidários. A Moncloa de verdade inaugurou a nação moderna, próspera, integrada à União Europeia. No Brasil que se recusa a avançar, a invocação do interesse nacional funciona como camuflagem de mesquinhos interesses pessoais. A Moncloa de mentira é só uma nota de rodapé na crise do bolsonarismo.
Demétrio Magnoli
Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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