O Estado de S.Paulo - 23/03
Bolsonaro está mais para Oscarito ou Mazzaropi do que para Creonte ou Mussolini
“O inimigo avança.” Na tradução de Millôr Fernandes, essa é a frase final de Antígona, a tragédia que Sófocles escreveu há 25 séculos para nos alertar, em vão, sobre os riscos da tirania. A toda hora o rei Creonte usa a ameaça do exército rival para justificar seus abusos contra sua própria gente. É um usurpador. Chantageia os habitantes de Tebas dizendo que se ele, Creonte, não estiver no trono, a cidade cairá nas mãos dos tenebrosos invasores estrangeiros. Se os tebanos não o seguirem e não lhe obedecerem, farão o jogo das tropas que, do lado de fora dos muros da cidade, esperam a melhor oportunidade para destruí-la. Com esse tipo de paranoia conspiratória, domina seu povo pelo medo, até que, ao final, tudo desmorona – enquanto “o inimigo avança”.
Antígona nos ensina que a personagem essencial de toda tirania não é o tirano propriamente, mas o inimigo, o tal que “avança”. É bem verdade que, no caso de Tebas, esse inimigo era real e iminente, embora não fosse tão apavorante como Creonte o descrevia. Em tiranias mais presentes, o inimigo não tem existência factual; é apenas uma construção retórica para emprestar uma legitimidade fraudulenta ao regime arbitrário. No nazismo, os judeus foram postos nesse lugar de inimigo retórico; no stalinismo, o mesmo papel coube aos trotskistas. A propaganda oficial transformava pessoas indefesas – judeus e trotskistas – em oponentes de poderes incomensuráveis, capazes das atrocidades mais indizíveis. A partir daí, a perfídia do totalitarismo consistiu em dizimar seres humanos frágeis como se fossem a encarnação das piores entidades do inferno. Hitler e Stalin aterrorizavam a população e ainda posavam de vítimas, de mártires abnegados dispostos a se sacrificar e morrer pela pátria. Os dois sabiam que jamais se estabeleceriam se não tivessem inimigos retóricos para justificar a si próprios. Sabiam que precisavam inventar a personagem central de toda tirania: o inimigo.
A lição de Sófocles deveria ser relembrada todos os dias. Se você quiser se indagar com o risco de tiranias, não se preocupe em identificar o aspirante ao cargo de tirano. Antes comece procurando pelo inimigo retórico que uns e outros estão construindo com seus discursos histéricos. Por esse critério (infalível), você verá que no mundo de hoje não faltam caudilhos mais ou menos consolidados que, com suas cruzadas contra opositores mais ou menos fictícios, acarretam tragédias maiores ou menores. Quanto ao Brasil, ao menos por enquanto, não temos um tirano instalado, temos um arremedo de algo desse naipe: um presidente que não desiste de ser candidato a ditador. E então? O que representa essa figura? Para onde aponta o destino do nosso país?
O que sabemos até agora é que para alcançar seu objetivo o candidato a ditador tenta a toda hora bestializar a figura daqueles que elegeu como seus inimigos retóricos preferenciais: os políticos, os professores, os gays, os artistas, os jornalistas e um ou outro ministro do Supremo Tribunal Federal. Ele sabe que precisa de um bloco de inimigos. Presentemente, deu de reclamar que lhe faltam instrumentos de mando. Queixa-se da ingovernabilidade nacional. Pleiteia, sem dizer que pleiteia, poderes para combater essa gente inútil: os políticos, que, segundo ele, só praticam a corrupção; os professores, que fazem lavagem cerebral na cabeça da juventude para desencaminhá-la com doutrinas comunistas; os gays, que conspurcam as bases da família tradicional; os artistas, que – onde já se viu? – querem liberdade; os jornalistas, que apuram os fatos; e, por fim, certos magistrados que ficam aí resistindo e se recusam a mandar prender todos os anteriores de uma vez por todas.
Olhando as coisas por esse ângulo, o risco da tirania ronda também esta terra em que se plantando tudo dá. O presidente candidato a ditador ostenta traços de bonapartismo explícito: nele transparecem o desejo incontido de atropelar os outros Poderes e a obsessão de forjar um laço direto com as massas, passando por cima das mediações institucionais (basta ver as manifestações de rua que ele mandou convocar para o próximo domingo, cuja pauta beira a inconstitucionalidade). O sujeito também carrega traços fascistas: sua pregação desmesuradamente fálica acerca de pistolas e virilidades, além de obscena, é mussoliniana, assim como são mussolinianos os elogios que se tecem no seu entorno a agrupamentos armados fora do comando do Estado. Diante de tais evidências, só se pode concluir que a democracia está sitiada e a tragédia se avizinha.
Acontece que há também um forte componente paródico no personagem em pauta. Com o devido respeito, a estampa de Jair Bolsonaro tem um quê de burlesco. Falta-lhe o carisma, que requer dons pessoais extraordinários. No fundo – cada vez mais gente pressente –, ele está mais para Oscarito ou Mazzaropi do que para Creonte ou Mussolini. Seus apoiadores começam a debandar, menos por divergência ideológica e mais por se envergonharem das doses incomensuráveis de pastiche-pastelão. Muitos de seus eleitores já se furtam a comparecer às passeatas de domingo, não porque tenham desistido das convicções autoritárias, mas porque ainda lhes resta um pingo de senso de ridículo.
Visto por aí, o cenário não é de tragédia, mas de chanchada da Atlântida. Por esse ângulo, o problema de Bolsonaro não é seu liberalismo fajuto, não são os modos ferozes, não é a bancarrota da economia, não é o despreparo pedestre ou a incapacidade para depreender o significado da palavra nova-iorquino. O seu problema é mais embaixo – e mais baixo. Ele parece estar à frente de um mandato que, por não ter tido condições de se fazer levar a sério, talvez não logre se levar a cabo. Se for isso mesmo, a Nação terá perdido tempo e saúde não com um populista de direita, mas com uma piada asquerosa, regurgitada, sobre a qual o inimigo (real ou retórico) não avança porque se dobra de rir.
Ou será mesmo tragédia?
Eugênio Bucci é jornalista e professor da ECA-USP.
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