O governo Bolsonaro tem caprichado para errar sempre mais e sempre mais alto
No início de 2003, Rita Lee recebeu pelo correio um CD caseiro com um bilhete dizendo “fiz esse roquinho pra você”. Quem assinava era Moacyr Franco, o veterano músico, ator e apresentador de TV. Rita, que se consagrou como vocalista dos Mutantes e depois estabeleceu uma sólida carreira de sucesso na MPB, mal sabia que estava prestes a ouvir uma pérola. Moacyr, um dos mais conhecidos cantores brega da época, achava que seu CD sequer seria ouvido pela rainha do rock brasileiro. Muito menos que ela gostaria do seu roquinho.
A música “Tudo vira bosta”, que em 2003 fazia todo sentido, é ainda hoje absolutamente atual. A batida do rock é muito gostosa, mas o que sobressai do conjunto é a letra. Trata-se de uma canção de protesto, embora o autor diga que nunca teve esta pretensão. Numa entrevista concedida à “Folha” logo depois do lançamento de Balacobaco, disco de Rita que incluiu sua música, Moacyr disse: “como posso falar em protesto depois das coisas que o Chico Buarque fez?”.
Talvez o autor tenha razão. Talvez “Tudo vira bosta” não seja um protesto, mas sim uma constatação. Não importa o que você coma ou beba, não importa o que você consuma, tudo ao final vai virar bosta mesmo. A letra vai muito além do arroz com feijão. Trata de política e religião, de bancos e bens materiais, de música e droga. E em cada um dos casos cantados, tudo acaba escatologicamente na privada.
Vale reproduzir aqui pelo menos dois trechos. Ambas as estrofes começam tratando de comida e terminam fazendo considerações políticas. Em 2003, o Brasil iniciava a era PT, com o governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Escutando a música ou lendo a letra, a maioria haverá de concordar que suas considerações cabem tanto àquele governo quanto poderiam caber ao atual de Jair Bolsonaro.
“O ovo frito, o caviar e o cozido / A buchada e o cabrito / O cinzento e o colorido / A ditadura e o oprimido / O prometido e o não cumprido / E o programa do partido / Tudo vira bosta”
“A rabada, o tutu, o frango assado / O jiló e o quiabo / Prostituta e deputado / A virtude e o pecado / Esse governo e o passado / Vai você que eu tô cansado / Tudo vira bosta”
Essa letra poderia também ser lida como um hino ao relaxa e goza, uma vez que ela quase recomenda deixar de se incomodar com todas essas coisas que ao final vão mesmo abaixo pelo cano do esgotamento sanitário. No caso do governo do PT, foi quase uma premonição. Mesmo levando-se em conta os aspectos positivos, que não foram poucos, sobretudo do primeiro mandato de Lula, não há qualquer dúvida de que o PT teve uma enorme dor de barriga e se desintegrou numa disenteria gigantesca.
Difícil prever se o destino do governo atual será o mesmo. Embora seja ainda muito cedo no início do mandato, o caos dos primeiros cem dias é de dar inveja a Jânio Quadros. O governo Bolsonaro tem caprichado para errar sempre mais e sempre mais alto. Seguindo nessa balada, muito certamente o governo agora fresco acabará como terminou a mofada gestão de Michel Temer. “Esse governo e o passado (...) tudo vira bosta”.
Na política, aliás, nem mesmo o autor da música escapou da sua maldição. Moacyr Franco foi deputado pelo PTB de São Paulo por apenas um mandato, no final dos anos 80. Quando tentou voltar, candidatando-se a um cargo de senador pelo PSL, escolheu o ano errado e foi derrotado em 2010. Pelo PSL talvez fosse eleito no ano passado. Ou não. O fato é que viraria bosta, mais cedo ou mais tarde.
Nós, brasileiros, temos a mania de dizer que o Brasil é maior do que qualquer buraco, não importa qual crise. Achamos que pelo nosso tamanho e porque somos espertos, nosso país não escorrerá pelo ralo, não será despejado num rio qualquer, numa baía qualquer, como são jogados todos os dejetos que produzimos e que não são tratados nem dispensados adequadamente.
O Brasil é grande, é maior que a maioria. Nenhuma dúvida. Mas se dele não nos ocuparmos seriamente, se não o tratarmos com muita atenção e toda a dedicação, o desarranjo intestinal que se seguirá será memorável.
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