REVISTA VEJA edição nº 2586
Precisamos falar um pouco sobre o regime militar no Brasil, porque em nosso país, ao contrário do que em geral acontece no resto do mundo, a história vai ficando mais incerta com o decorrer do tempo. É a velha tirada do ex-ministro Pedro Malan: o Brasil é um país tão difícil que aqui não dá para prever nem o passado. Apareceram na praça, pouco tempo atrás, mais informações sobre o período do “regime militar”, ou “ditadura militar”, conforme o lado da rua em que o cidadão está — e o tema, que periodicamente sai do túmulo, circula pelos meios de comunicação e volta a ser enterrado, ganha de novo seus quinze minutos de fama. Desta vez, fomos informados de que os generais que mandavam no governo, inclusive um presidente da República, seu sucessor e outros colossos das Forças Armadas, autorizaram a “execução sumária” de “opositores do regime”. A informação é de um documento da CIA, a agência de espionagem dos Estados Unidos, e não esclarece se os seus espiões ouviram, de vivo ouvido, a conversa em que os chefes militares decidiram dar essas ordens. Seja como for, as dúvidas não vêm mais ao caso. A “denúncia da CIA” morreu de inanição pouco depois de ter nascido — não chegou a impressionar os especialistas nem, menos ainda, a interessar os indiferentes ao assunto.
A curiosidade, nesse último episódio de viagem ao passado, não é a falta de um ponto de chegada. O esquisito é a repetição da tentativa de manter vivos um mundo e uma época que estão mortos — apesar dos resultados cada vez mais frouxos que se obtêm com esses esforços de ressurreição. Pretende-se estabelecer a “verdade” sobre o passado — chegaram a criar até uma “comissão nacional” para essa tarefa. A cada tentativa, naturalmente, não se estabeleceu verdade nenhuma. Como seria possível, se o centro da questão está em fatos que aconteceram há cinquenta anos? As responsabilidades teriam de ter sido apuradas lá atrás. Mas para isso seria indispensável que os militares tivessem perdido seu combate contra os grupos que queriam derrubá-los — só assim poderiam ter sido presos, julgados e condenados. (Ou “executados sumariamente”, talvez.) Acontece que os militares não perderam. Saíram do governo porque quiseram e foram em boa ordem para as suas casas, protegidos por uma lei de anistia legalmente aprovada. Não passou pela cabeça de ninguém, na hora, chamar o general Pedro ou o coronel Paulo para responder a inquérito nenhum. Caso encerrado, então. Punições desse tipo ou vêm imediatamente após o encerramento do conflito, ou não vêm nunca mais. Não dá para reabrir o Tribunal de Nuremberg ou os Processos de Tóquio. Não dá para descobrir a verdade sobre a Guerra dos Farrapos. Pode até dar — mas é inútil.
O que acaba acontecendo, na vida real, é que, a cada expedição arqueológica feita para descobrir a “verdade histórica”, o passado se torna mais obscuro, e não mais claro. Em vez de se saber mais, fica-se a saber menos. No caso do regime que vigorou de 31 de março de 1964 até 31 de dezembro de 1978, quando foi revogado o Ato Institucional nº 5, a passagem do tempo torna as coisas especialmente mais vagas para o brasileiro comum. O período é descrito pelos fiscais da história nacional como o mais negro de toda a existência do Brasil — os tais “anos de chumbo”, piores que qualquer desgraça que o país tenha vivido até hoje. Mas, a cada dia que passa, mais ralo vai ficando esse caldo. Hoje, só cidadãos que já estão com 72 anos de idade, ou mais, tinham chegado aos 18 e eram adultos em 1964. Todos os oficiais atualmente na ativa nas Forças Armadas eram crianças na época, ou nem tinham nascido. Dos que sobreviveram, muitos não acham que aqueles foram “anos de chumbo” — ou nem sequer se lembram de algum incômodo causado em seu dia a dia pelo “regime”. Mais de 60% da população atual do Brasil, ou acima de 125 milhões de pessoas, tem até 40 anos de idade. Nenhuma delas era viva quando o AI-5 foi revogado e as liberdades públicas e privadas foram restabelecidas. Por que essa gente toda iria achar que o governo militar é uma questão fundamental em sua vida? Não é. Não vai ser nunca.
Os chefes militares foram responsáveis por mortes, torturas e prisões ilegais. Claro que foram: o AI-5 não aboliu o Código Penal nem tornou legal o homicídio. Como cometer crimes sem autorização superior? Todos achavam, aliás, que estavam fazendo muito bem — na sua visão, havia simplesmente um inimigo a eliminar. Não vão mudar de ideia. Esperam, ao contrário, que o tempo traga cada vez mais gente para o seu lado.
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