A incompetência do Estado é justificativa para comportamento coletivo cada vez mais selvagem no Rio
Como quase todo mundo da minha geração, eu também cresci sem saber nada sobre a Índia. As escolas pouco ou nada ensinavam sobre o outro lado do mundo; cada qual que descobrisse por si o que lhe interessava. Passei a maior parte da vida familiarizada com os clichês habituais — pobreza, yoga, gurus, vacas sagradas. Por causa do movimento da não agressão de Gandhi, e da sua figura ascética, imaginava uma terra de grande paz, e levei um choque quando comecei a ler a sério sobre o país. Como assim, mais de um milhão de mortos durante a partição? Como assim, intolerância religiosa? E estupros? E assassinatos? Onde ficava a não violência nisso? Eu não tinha parado para pensar que é preciso muita violência para dar origem a um movimento de não violência: não seria numa aldeia dinamarquesa ou num cantão suíço que alguém teria essa ideia.
Desde que entendi isso, passei a entender muita coisa. Uma ficha tão simples, que demorou tanto a cair na minha cabeça.
Hoje, no Rio, somos todos especialistas em segurança pública.
Todos nos consideramos aptos a palpitar sobre a intervenção, sobre o que deve ser feito e como e quando. E o pior é que, de certa forma, somos todos abalizados. Convivemos com a falta de segurança desde sempre, já estivemos todos ou quase todos sob a mira de armas, já vimos o exército entrar e sair da cidade inúmeras vezes, achamos a coisa mais normal ver um carro da polícia circulando com canos de fuzis saindo pelas janelas, enquanto a tiragem lá dentro conversa despreocupadamente. Desenvolvemos habilidades e estratégias, criamos e consultamos aplicativos e rezamos para voltar vivos para casa, mesmo quando somos ateus.
Ao mesmo tempo, incorporamos a violência de uma forma bizarra. O exemplo mais extremo é a naturalidade com que aceitamos a contravenção na direção das escolas de samba, e as suas relações incestuosas com o poder. Participamos de corpo e alma dos desfiles, optando por não lembrar como são financiados. Mas essa complacência vai além do carnaval, e está presente o ano inteiro no nosso cotidiano de malandragem, no absoluto desprezo que devotamos às regras básicas da cidadania: pequenas coisas que não matam ninguém, mas que compõem um coquetel tóxico de incivilidade.
Entrar na fila, respeitar a sinalização? Ora, imaginem. O barzinho que funciona até altas horas na zona residencial é bacana, o barulho da praça que não deixa ninguém dormir é sinal de alegria, o bloco que invade o aeroporto aos berros é apenas contestador porque grita “Fora Temer!”, e gritar “Fora Temer!” é sinal verde para qualquer transgressão. Pichação é manifestação de inconformismo e não deve ser reprimida, quebrar equipamento público é válido, destruir canteiros e jardins não é nada porque, afinal, o mundo é cruel.
A violência e a incompetência do estado, inquestionáveis há décadas, servem no Rio como justificativa para um comportamento coletivo cada vez mais antissocial e selvagem, uma espécie de buraco negro da cidadania. Como o Estado não faz a parte dele, achamos razoável que a população não faça a sua, sem perceber para onde nos leva essa espiral de desordem.
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Há dias não faço outra coisa a não ser ouvir sobre a intervenção, conversar sobre a intervenção, ler sobre a intervenção. Alguma coisa tinha que ser feita no nosso estado desgovernado, e afinal alguma coisa foi feita; por isso, em princípio, não sou contra ela, ainda que as suas intenções sejam questionáveis. Mas ou ela é para valer, e vai em cima da polícia e dos verdadeiros chefões das quadrilhas, ou não vai adiantar nada: ou ela desmantela a estrutura corrompida da segurança no Rio de Janeiro, ou logo teremos, além da violência do dia a dia, um exército desmoralizado. E ou ela se faz para todos, respeitando igualmente toda a população, ou vai criar uma situação injusta e insustentável. É uma cartada perigosa, um band-aid em cima de uma ferida que só uma longa cirurgia resolverá.
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O Rio virou um estado tão sem-vergonha que o presidiário Sérgio Cabral sequer se deu conta de que estava fazendo uma confissão de culpa ao pedir transferência de Curitiba, alegando que, com a intervenção, o sistema carcerário ficará por conta do governo federal. Que cara de pau.
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Do Facebook: “Imagina uma mulher sozinha à noite em casa porque o marido trabalha à noite e com duas filhas ela ser obrigada a abrir a porta e entra mais de dez homens armados e falar que não vai fazer nada só dormir e esta mulher se trancar no quarto com as filhas e ela ter que acalmar as filhas para não chorar e as meninas ficarem vomitando de nervoso e passarem a noite toda trancadas com medo sem saber o que poderia acontecer e pela manhã só ouvir a porta batendo e sair pra ver se já foram embora e ver que tudo que tinha que já era pouco biscoitos leite suco danone tudo que podia ser comido eles comeram e a pessoa não saber se na noite seguinte eles voltariam ou na outra.”
Como quase todo mundo da minha geração, eu também cresci sem saber nada sobre a Índia. As escolas pouco ou nada ensinavam sobre o outro lado do mundo; cada qual que descobrisse por si o que lhe interessava. Passei a maior parte da vida familiarizada com os clichês habituais — pobreza, yoga, gurus, vacas sagradas. Por causa do movimento da não agressão de Gandhi, e da sua figura ascética, imaginava uma terra de grande paz, e levei um choque quando comecei a ler a sério sobre o país. Como assim, mais de um milhão de mortos durante a partição? Como assim, intolerância religiosa? E estupros? E assassinatos? Onde ficava a não violência nisso? Eu não tinha parado para pensar que é preciso muita violência para dar origem a um movimento de não violência: não seria numa aldeia dinamarquesa ou num cantão suíço que alguém teria essa ideia.
Desde que entendi isso, passei a entender muita coisa. Uma ficha tão simples, que demorou tanto a cair na minha cabeça.
Hoje, no Rio, somos todos especialistas em segurança pública.
Todos nos consideramos aptos a palpitar sobre a intervenção, sobre o que deve ser feito e como e quando. E o pior é que, de certa forma, somos todos abalizados. Convivemos com a falta de segurança desde sempre, já estivemos todos ou quase todos sob a mira de armas, já vimos o exército entrar e sair da cidade inúmeras vezes, achamos a coisa mais normal ver um carro da polícia circulando com canos de fuzis saindo pelas janelas, enquanto a tiragem lá dentro conversa despreocupadamente. Desenvolvemos habilidades e estratégias, criamos e consultamos aplicativos e rezamos para voltar vivos para casa, mesmo quando somos ateus.
Ao mesmo tempo, incorporamos a violência de uma forma bizarra. O exemplo mais extremo é a naturalidade com que aceitamos a contravenção na direção das escolas de samba, e as suas relações incestuosas com o poder. Participamos de corpo e alma dos desfiles, optando por não lembrar como são financiados. Mas essa complacência vai além do carnaval, e está presente o ano inteiro no nosso cotidiano de malandragem, no absoluto desprezo que devotamos às regras básicas da cidadania: pequenas coisas que não matam ninguém, mas que compõem um coquetel tóxico de incivilidade.
Entrar na fila, respeitar a sinalização? Ora, imaginem. O barzinho que funciona até altas horas na zona residencial é bacana, o barulho da praça que não deixa ninguém dormir é sinal de alegria, o bloco que invade o aeroporto aos berros é apenas contestador porque grita “Fora Temer!”, e gritar “Fora Temer!” é sinal verde para qualquer transgressão. Pichação é manifestação de inconformismo e não deve ser reprimida, quebrar equipamento público é válido, destruir canteiros e jardins não é nada porque, afinal, o mundo é cruel.
A violência e a incompetência do estado, inquestionáveis há décadas, servem no Rio como justificativa para um comportamento coletivo cada vez mais antissocial e selvagem, uma espécie de buraco negro da cidadania. Como o Estado não faz a parte dele, achamos razoável que a população não faça a sua, sem perceber para onde nos leva essa espiral de desordem.
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Há dias não faço outra coisa a não ser ouvir sobre a intervenção, conversar sobre a intervenção, ler sobre a intervenção. Alguma coisa tinha que ser feita no nosso estado desgovernado, e afinal alguma coisa foi feita; por isso, em princípio, não sou contra ela, ainda que as suas intenções sejam questionáveis. Mas ou ela é para valer, e vai em cima da polícia e dos verdadeiros chefões das quadrilhas, ou não vai adiantar nada: ou ela desmantela a estrutura corrompida da segurança no Rio de Janeiro, ou logo teremos, além da violência do dia a dia, um exército desmoralizado. E ou ela se faz para todos, respeitando igualmente toda a população, ou vai criar uma situação injusta e insustentável. É uma cartada perigosa, um band-aid em cima de uma ferida que só uma longa cirurgia resolverá.
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O Rio virou um estado tão sem-vergonha que o presidiário Sérgio Cabral sequer se deu conta de que estava fazendo uma confissão de culpa ao pedir transferência de Curitiba, alegando que, com a intervenção, o sistema carcerário ficará por conta do governo federal. Que cara de pau.
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Do Facebook: “Imagina uma mulher sozinha à noite em casa porque o marido trabalha à noite e com duas filhas ela ser obrigada a abrir a porta e entra mais de dez homens armados e falar que não vai fazer nada só dormir e esta mulher se trancar no quarto com as filhas e ela ter que acalmar as filhas para não chorar e as meninas ficarem vomitando de nervoso e passarem a noite toda trancadas com medo sem saber o que poderia acontecer e pela manhã só ouvir a porta batendo e sair pra ver se já foram embora e ver que tudo que tinha que já era pouco biscoitos leite suco danone tudo que podia ser comido eles comeram e a pessoa não saber se na noite seguinte eles voltariam ou na outra.”
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