Certa feita, uma jornalista se aproximou do economista Luiz Guilherme Schymura, presidente do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da FGV, e perguntou o que ele achava da necessidade de corte dos gastos públicos e da implantação no Brasil do "Estado mínimo". Sem pestanejar, Schymura respondeu: "Você está fazendo a pergunta à pessoa errada. Eu tive condições de estudar e ter hoje um doutorado. Meu escritório na FGV é grande, tem ar-condicionado e vista para o Pão de Açúcar. Eu não uso quase nada dos serviços públicos. Você deve fazer essa pergunta a quem precisa do Estado".
Há quem veja na resposta de Schymura um viés antiliberal ou até mesmo um deboche - o Estado brasileiro está quebrado e o gasto público precisa, sim, ser reduzido. Não é ironia do economista: políticas públicas só dão certo se a torcida do Flamengo for ouvida antes. Ademais, o presidente do Ibre teve irretocável formação liberal - graduação na PUC do Rio, mestrado e doutorado na FGV, onde, além de presidir o mais antigo "think tank" liberal do país, dá aulas.
Especialista em concorrência, ele assumiu o comando da Anatel em abril de 2002, último ano do governo Fernando Henrique Cardoso, e foi demitido em 2004 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, mais de um ano antes do fim do mandato. A saída foi ruidosa - o governo do PT não admitia a independência dos órgãos reguladores, instituída por lei na gestão FHC, depois de o Congresso aprovar o fim dos monopólios estatais. Talvez, ali, vendo de perto a operação de um governo de esquerda, Schymura tenha começado a entender a complexidade brasileira.
Tom Jobim dizia que "o Brasil não é para principiantes". Como economista, Schymura diz - aí, sim, com uma boa dose de ironia - que a solução dos problemas está na aritmética. Hoje, com exceção de setores do funcionalismo público, todos sabemos que o país tem um sufocante déficit nas contas da Previdência Social e das aposentadorias dos servidores públicos. Negar a existência do buraco é equivalente a dizer que o aquecimento global é uma ficção criada pelos países ricos para impedir o desenvolvimento dos pobres.
Os gastos com aposentadorias e pensões já consomem 57% das receitas da União. Se nada for feito, a conta chegará a 80% do Produto Interno Bruto (PIB) em dez anos, justamente quando o bônus demográfico (a existência de mais trabalhadores na ativa do que aposentados) estará se esgotando. Na entrevista arrasa-quarteirão que concedeu ao Valor, publicada na última sexta-feira, Schymura observou que, aplicando-se a solução aritmética, bastaria matar os idosos para resolver o problema previdenciário. Depois disso, a economia cresceria 10% ao ano.
"Isso é aritmética, não é o mundo", adverte Schymura. A alusão, claro, é às soluções técnicas que, mesmo formuladas de maneira brilhante, são forjadas por economistas dentro de gabinetes em Brasília. Esta é uma boa pista para se entender por que muitas leis e políticas públicas no Brasil não saem do papel. É preciso ir além da aritmética: para darem certo, mudanças nas regras do jogo precisam ser pactuadas na sociedade. Sem isso, tornam-se letras mortas.
O problema fiscal brasileiro é gravíssimo. Desde 1991, os gastos da União crescem, em média, 6% ao ano em termos reais, isto é, descontada a inflação. Em algum momento, essa pirâmide ia desmoronar. A ex-presidente Dilma Rousseff resolveu dar um empurrãozinho ladeira acima ou abaixo, a depender da perspectiva de quem observa - entre 2008 e 2015, quando ela mandava no Planalto Central, a despesa avançou 50% em termos reais. Como as políticas de Dilma jogaram o país numa longa recessão, no mesmo período as receitas cresceram apenas 15% e a diferença foi coberta com dívida.
Neste momento, o governo não consegue baixar o déficit primário (que não considera o gasto com juros) abaixo de 2,5% do PIB. Se nada for feito, a dívida, que vem crescendo à ordem de dez pontos percentuais de PIB por ano, tornar-se-á inadministrável. Já vimos esse filme em 1982, 1987, 1990, quando houve o confisco das contas bancárias, um congelamento forçado da dívida pública. O resultado foi hiperinflação, baixo investimento e crescimento, desemprego etc.
Diante dessa tragédia, Schymura recusa-se a pensar apenas como um técnico que precisa achar solução para um problema econômico. Sua preocupação é o teto de gastos inscrito na Constituição pelo governo Temer. Por essa regra, a despesa da União não poderá crescer em termos reais durante dez anos. O problema é que vinha subindo 6% acima da inflação. Como alguns gastos, como o da Previdência, é obrigatório e cresce de maneira vegetativa, fica ainda mais difícil ficar dentro do teto.
Que setor da sociedade vai ceder para que a União se ajuste ao teto? Há o consenso, diz Schymura, da necessidade de um ajuste fiscal, "mas desde que o ônus seja do outro". Como não há acordo, até porque geralmente esse tipo de medida não é negociado antes com os segmentos afetados, o risco de crise institucional nos próximos dois anos é considerável. Como as punições pelo não cumprimento do teto recairão sobre o funcionalismo e os aposentados, a chance de o assunto terminar na Justiça é grande.
Para Schymura, o problema é institucional: Brasília, como Washington e outras capitais de nações democráticas, é dominada por grupos de interesses específicos. Uma olhadela no orçamento de isenções tributárias e nas políticas públicas é suficiente para saber quem são os donos do poder. É bom que se diga que esses estão representados por todos os extratos da pirâmide social, com exceção dos pobres.
Durante os oito anos em que comandou a Receita Federal, Everardo Maciel, desabafava, depois de gastar muita energia tentando conter ataques à renda nacional: "Pobre não tem representante em Brasília". É o que Schymura destaca como "interesses difusos": ninguém os defende, a não ser, os populistas de esquerda e direita, que costumam dar esmola aos desfavorecidos, em vez de adotar políticas que os emancipem.
O teto é uma medida radical e emergencial. O presidente do Ibre acha, apenas, que ele não será cumprido e a solução do problema fiscal será dada, mais uma vez na história do país, pela explosão da inflação. Sendo assim, novamente, o grosso da conta será pago por quem não tem representantes no Planalto Central: eles, os pobres.
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