ESTADÃO - 24/12
No Brasil, separaram a noção de Poder e a de responsabilidade pelo trabalho de governar
Como dizem nos filmes, há boas e más notícias nas projeções para a economia brasileira nos próximos anos. As boas são suficientes, sem ambições irrealistas, para encher uma cesta de Natal. O crescimento econômico deve ficar entre 2,5% e 3% em 2018, superando de longe o desempenho – cerca de 1% de expansão – estimado para 2017. O quadro internacional continua benigno, com os principais mercados em recuperação e dinheiro ainda farto, apesar da elevação de juros iniciada nos Estados Unidos. A retomada se espalha, no Brasil, pelos segmentos da indústria. As contas externas estão sólidas e assim devem continuar, mesmo com o esperado aumento das importações, consequência saudável da reativação nacional. A inflação deve permanecer contida pelo menos até 2020, segundo as previsões do mercado e do Banco Central. O investimento produtivo, embora ainda muito baixo, está em recuperação, depois de quatro anos de queda, e deve seguir em alta. Se isso se confirmar, um ciclo de crescimento seguro estará praticamente garantido. Mas essas previsões, presentes em todos os cenários mais elaborados, são acompanhadas de uma ressalva: o fortalecimento econômico só será duradouro se houver avanço no ajuste das finanças púbicas – incluída a reforma da Previdência. Quem cuidará dessa condição?
Não se pode falar de perspectiva econômica, neste país, sem cuidar da política. Em democracias mais avançadas, mais estáveis e com instituições consolidadas e em bom estado de funcionamento, pode-se tratar de economia sem levar em conta o dia a dia do jogo parlamentar e da articulação entre os Poderes. Isso seria um luxo perigoso no Brasil, embora alguns otimistas continuem a mencionar um descolamento entre o mundo econômico e o político. Acreditar nisso é ilusão ou, no mínimo, distração quase inexplicável. Basta ver como as oscilações na negociação da reforma da Previdência afetam as curvas de juros e a taxa de câmbio no dia a dia do mercado financeiro. Não há como descartar a questão crucial: quem cuidará das condições necessárias à retomada segura do crescimento?
O Executivo pode formular e conduzir a política econômica até certo ponto, mas o jogo envolve o Palácio do Planalto e toda a vizinhança. Governar envolve muito mais que a Presidência da República, os ministérios e seus órgãos auxiliares. É preciso levar em conta a amplitude da palavra governar, geralmente usada no Brasil em sentido muito restrito.
Os gringos falam em ramos do governo (branches of government) quando se referem à divisão de funções entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Falar de governo é falar de autoridade e até de mordomias, mas também de obrigações e serviços devidos aos prezados cidadãos. Muitos cidadãos sabem disso nas democracias maduras e cobram a execução do trabalho. Em vez de ramos do governo, os brasileiros mencionam Poderes da República, fiéis, pelo menos quanto ao vocabulário, à tradição francesa.
Poderes e responsabilidades são termos correlatos na linguagem das democracias avançadas ou, no mínimo, razoavelmente amadurecidas. No Brasil a correlação é muito menos clara. A separação de Poderes nem sempre é invocada em nome da boa operação do sistema. Com frequência é lembrada como argumento a favor de vantagens como auxílio-moradia, auxílio-paletó, transporte e mimos até mais custosos, cobrados como direitos por membros do Legislativo e do Judiciário.
Tudo se passa como se, nesse regime, coubesse a cada Poder fixar a própria despesa sem levar em conta as limitações da receita fiscal ou qualquer critério prosaico de prioridade e, portanto, de uso eficiente do dinheiro público. São três Poderes e um só Tesouro, mas cuidar do Tesouro, dando atenção a restrições financeiras, é atribuição do Executivo. Aos demais Poderes a boa ordem republicana só atribui o direito de gastar. A solidez das finanças é assunto do Executivo. É problema do presidente e de sua equipe descobrir como pagar em 2018 o aumento salarial esperado pelo funcionalismo. Se um ministro do Supremo Tribunal Federal proíbe o adiamento, vire-se o pessoal do Executivo para fechar as contas sem violar a meta fiscal, talvez elevando tributos ou cortando gastos essenciais.
No Congresso, a identificação entre governo e Executivo tornou-se mais desastrosa com a multiplicação dos partidos e de siglas vazias de significado programático. Quem é capaz de citar, ou de citar sem hesitação, todos os grupos da chamada base governista? Em democracias mais arrumadinhas, governistas tendem a apoiar projetos com a marca programática do Executivo, porque essa também é, em condições normais, a marca do partido. As dificuldades de Donald Trump com o Partido Republicano de nenhum modo desmentem essa ideia: nesse caso, o presidente é um ingrediente fora do padrão.
No Brasil, a separação entre as noções de poder institucional e responsabilidade governamental tem produzido, entre outras aberrações, a deformação catastrófica de projetos do Executivo, com perdas de bilhões para o Tesouro. Quem desfigurou o projeto do Refis foi um relator vinculado à chamada base governista. Além disso, nenhum projeto razoavelmente ousado, como o da reforma trabalhista e o do teto constitucional de gastos, foi aprovado sem a distribuição de benefícios bilionários. Cada movimento importante envolve uma negociação dispendiosa com os aliados. Pode parecer piada, mas o Executivo paga muito dinheiro para manter o déficit primário dentro do limite legal. Quanto ainda terá de pagar pela aprovação de mudanças necessárias à redução do déficit e ao controle do endividamento público? Nenhuma das projeções econômicas para os próximos anos cita esses valores. Todas incluem o pressuposto – sem os cifrões das barganhas – do avanço nos ajustes e reformas.
ROLF KUNTZ É JORNALISTA
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