Respeito à dignidade humana exige valorização do pluralismo de ideias e situações sociais
A decisão liminar da ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal (STF), de suspender a Portaria 1.129/2017 do Ministério do Trabalho sobre o trabalho escravo é uma comprovação de como o preconceito pode às vezes prevalecer sobre a realidade. Sem atentar para a realidade social concreta e o ordenamento jurídico, fez-se uma interpretação abstrata do ato do governo federal, partindo do pressuposto – não demonstrado – de que o decreto abranda o combate ao trabalho escravo.
Com ou sem portaria, a criminalização do trabalho escravo continua a mesma. É o Código Penal, em seu art. 149, que fixa a pena de reclusão de dois a oito anos, mais a multa, para o crime de “reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto”. A lei penal ainda diz que incorre na mesma pena quem “cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho, ou mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho”.
Sem dúvida, é uma legislação dura, que, em linha com vários tratados internacionais, amplia o conceito de trabalho escravo com o intuito de não abrir qualquer margem de tolerância para esse tipo de exploração absolutamente incompatível com a dignidade humana. É surpreendente que, em pleno século 21, ainda perdurem situações de escravidão e, portanto, todo o empenho para erradicar e punir esse mal é mais que louvável – é estritamente necessário. Essa causa é profundamente cara ao Estado, já que o motivo para a fundação do jornal em 1875 foi justamente a luta pela abolição da escravidão e pela instauração da República.
A luta contra a escravidão, no entanto, nada tem a ver com os abusos que vêm ocorrendo na fiscalização das situações de trabalho. O justo e necessário rigor da lei penal tem sido utilizado para intimidar e achacar empregadores cujas empresas e fazendas não apresentam qualquer indício da ocorrência das condutas tipificadas no Código Penal. Há uma subversão do conteúdo e do sentido da lei como forma de incriminar relações de trabalho, seja por motivos ideológicos, seja para obter benefícios pecuniários.
A Portaria 1.129/2017 foi baixada para regular essa realidade social e não se pode interpretar o ato do Ministério do Trabalho sem ter presente essas situações de abuso. A rigor, a suspensão dos efeitos da Portaria 1.129/2017 é uma afronta ao Estado de Direito, já que obriga o poder público a ser conivente com os abusos recorrentes impetrados pelos seus agentes.
As exigências contidas na Portaria 1.129/2017 não são irrazoáveis, e tampouco ferem a legislação pátria e os acordos internacionais. Basta ver que o ato do Ministério do Trabalho não deixa desprotegida qualquer situação que antes a lei protegia. A fiscalização contra o trabalho escravo pode e deve continuar, mas – e essa era a novidade do decreto – ela precisa ser feita de forma mais rigorosa, sem descuidos nos autos de infração que dão margem a muitos abusos.
Na celeuma criada em torno da Portaria 1.129/2017, há algo que fere profundamente o Estado Democrático de Direito. Permitiu-se que o preconceito – tratar uma medida razoável como mera barganha da bancada ruralista – produzisse efeitos jurídicos. As críticas à portaria exalam um profundo desconhecimento da realidade do campo, além de representarem um perigoso viés autoritário, como se os parlamentares que representam os interesses de quem vive e trabalha no campo fossem menos legítimos. Nessa estranha lógica, incompatível com a realidade geográfica e social do País, nota-se uma tentativa de excluir do debate público parcela significativa da população brasileira. O respeito à dignidade humana, tão vinculado à luta para erradicar o trabalho escravo, exige atitude oposta, de valorização do pluralismo, tanto de ideias como de situações sociais.
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