O que o senhor chama de melhor dos momentos de seu governo é aquele em que o projeto de dominação petista ganhou veio
O senhor nunca me enganou. Nem quando era vendido como petista pragmático, interlocutor dos mercados e fiador de Lula junto ao setor produtivo. Nunca me enganou. E é provável que mesmo os que então o compravam não se enganassem. Havia dinheiro a ganhar, porém. E, nisso, numa grande ode à desfaçatez, estavam todos afinados — não é?
Talvez seja o caso de informar que este que lhe escreve não é um idiota. Para mim, o senhor sempre foi aquele sob cuja gestão se quebrou o sigilo bancário de um caseiro que, segundo a mente mafiosa, poderia comprometer o ministro da Fazenda — um dos mais representativos episódios sobre até onde o petismo pode ir para defender seu projeto de poder, ataque do Estado a um indivíduo. Barbárie mesmo depois da qual o senhor não apenas coordenaria a primeira campanha de Dilma como ainda lhe seria chefe da Casa Civil. Para mim, isso é — sempre foi — Palocci e PT.
Que o senhor não tenha dúvida sobre minha pretensão de ser direto. Li sua carta à senadora Gleisi e ao comando da organização que ela dirige. Analisei-a sob a desconfiança que o histórico de sua vida pública impõe, o que estabelece premissa incontornável: se é provável que revele verdades, muito maiores são as chances de que o faça para esconder outras tantas. Gente como o senhor foi treinada para não agir senão com método. É preciso ter límpido, pois, o entendimento sobre as condições em que resolveu falar.
Não é porque se trate de um petista entregando outros que devem ser afrouxados os critérios sobre o peso probatório daquilo que se tem a relatar. Quem delata ou negocia para delatar é bandido confesso. Aqueles delatados, não. Não necessariamente. Sim: não acredito no senhor; mas isso só desqualificará sua delação se o conteúdo do que alcaguetar for tratado como algo mais do que meio para obtenção de prova. Não importa se Odebrecht, Batista, Funaro, Cunha ou Palocci, qualquer um nessa posição é um encrencado — um preso, condenado ou em vias de — em busca de aliviar a própria barra.
Não sou — admito — um homem desprovido de perversões. Sei apreciar uma boa estratégia mesmo que traçada pelo pior dos canalhas. Divirto-me com o xadrez que o senhor esgrime contra os de seu partido. É pura ciência. O senhor conhece a raça e, como é inteligente, tem conseguido se manter alguns corpos à frente até de Lula. Como é inteligente e cínico, está à vontade para aplicar um xeque-mate como esse em que questiona o fato de o PT nunca o ter punido pelos crimes em decorrência dos quais foi condenado, mas se mobilizar para penalizá-lo agora que se dispõe a revelar as ilegalidades cometidas pelo partido no curso dos anos em que governou o país.
É devastador o poder político de uma crítica moral feita por um amoral. O senhor é o que se chama de petista histórico — um fundador, prefeito pioneiro (junto, aliás, com Celso Daniel) nos projetos-piloto que testaram o modelo de ocupação do petismo. O senhor é um sobrevivente à procura de sobreviver, e sabe que as acusações de um de dentro dinamitam o blá-blá-blá de que a elite se articula para derrubar as conquistas do povo. Não é mais um empreiteiro a destampar os fundos — fornidos de propina — para sustentar a expansão autoritária do partido, mas Antonio Palocci, o formulador da tal “Carta ao povo brasileiro”, um dos pilares do castelo de cera sobre o qual o PT erigiu sua farsa. O senhor sabe a força que tem — força que é também de barganha.
Por favor. Sua principal motivação não é que toda a verdade seja dita, sobre todos os personagens envolvidos; mas que alguma, sobre alguns, baste para um acordo que abrevie os anos de cadeia. Falar a verdade — ou convencer de que o faz — é sempre o melhor caminho a quem não tem alternativa. O senhor não decidiu colaborar com a Justiça por estar arrependido e disposto a contribuir para a apuração de crimes etc. A sua própria carta oferece os elementos indicativos de que não se compungiu senão dos erros de procedimento que afinal expuseram o assalto petista ao Estado.
O senhor é inteligente, mas vaidoso. E, quando se elogia, se trai. Lula não sucumbiu ao pior da política no melhor dos momentos de seu governo. Lula e o PT sempre foram Lula e o PT, e o que o senhor chama de melhor dos momentos é aquele, exato, em que o projeto de dominação petista encontrou o veio — o mito do pré-sal — por meio do qual se robustecer e avançar. O senhor, objetivamente, considerava isso necessário — e trabalhou pelo sucesso do aparelhamento: para ver em movimento, na prática, a própria definição de esquerda no poder, inflando o Estado para ampliar a superfície a ser pilhada. E estaria lá, a serviço, ainda hoje, não tivesse a casa, enfim, caído de vez.
Por isso chama de “mau governo” o de Dilma. Não por haver redobrado as apostas irresponsáveis do antecessor, mas porque, incompetente em todos os sentidos, acelerou o derretimento do legado artificial lulista, o que escancarou — sem dinheiro para novas defesas populistas — a “rede de sustentação corrupta” do esquema partidário.
O senhor sente saudade de quando a aprovação do governo Lula era de 95%, ambiente de fartura propício ao desenvolvimento do mais ambicioso projeto de tomada do Estado por um partido da história do Brasil. O senhor sente saudade de quando ainda havia petrodólares para comprar o engano alheio — essa, a saudade do vício, a essência de sua carta.
Carlos Andreazza é editor de livros
O senhor nunca me enganou. Nem quando era vendido como petista pragmático, interlocutor dos mercados e fiador de Lula junto ao setor produtivo. Nunca me enganou. E é provável que mesmo os que então o compravam não se enganassem. Havia dinheiro a ganhar, porém. E, nisso, numa grande ode à desfaçatez, estavam todos afinados — não é?
Talvez seja o caso de informar que este que lhe escreve não é um idiota. Para mim, o senhor sempre foi aquele sob cuja gestão se quebrou o sigilo bancário de um caseiro que, segundo a mente mafiosa, poderia comprometer o ministro da Fazenda — um dos mais representativos episódios sobre até onde o petismo pode ir para defender seu projeto de poder, ataque do Estado a um indivíduo. Barbárie mesmo depois da qual o senhor não apenas coordenaria a primeira campanha de Dilma como ainda lhe seria chefe da Casa Civil. Para mim, isso é — sempre foi — Palocci e PT.
Que o senhor não tenha dúvida sobre minha pretensão de ser direto. Li sua carta à senadora Gleisi e ao comando da organização que ela dirige. Analisei-a sob a desconfiança que o histórico de sua vida pública impõe, o que estabelece premissa incontornável: se é provável que revele verdades, muito maiores são as chances de que o faça para esconder outras tantas. Gente como o senhor foi treinada para não agir senão com método. É preciso ter límpido, pois, o entendimento sobre as condições em que resolveu falar.
Não é porque se trate de um petista entregando outros que devem ser afrouxados os critérios sobre o peso probatório daquilo que se tem a relatar. Quem delata ou negocia para delatar é bandido confesso. Aqueles delatados, não. Não necessariamente. Sim: não acredito no senhor; mas isso só desqualificará sua delação se o conteúdo do que alcaguetar for tratado como algo mais do que meio para obtenção de prova. Não importa se Odebrecht, Batista, Funaro, Cunha ou Palocci, qualquer um nessa posição é um encrencado — um preso, condenado ou em vias de — em busca de aliviar a própria barra.
Não sou — admito — um homem desprovido de perversões. Sei apreciar uma boa estratégia mesmo que traçada pelo pior dos canalhas. Divirto-me com o xadrez que o senhor esgrime contra os de seu partido. É pura ciência. O senhor conhece a raça e, como é inteligente, tem conseguido se manter alguns corpos à frente até de Lula. Como é inteligente e cínico, está à vontade para aplicar um xeque-mate como esse em que questiona o fato de o PT nunca o ter punido pelos crimes em decorrência dos quais foi condenado, mas se mobilizar para penalizá-lo agora que se dispõe a revelar as ilegalidades cometidas pelo partido no curso dos anos em que governou o país.
É devastador o poder político de uma crítica moral feita por um amoral. O senhor é o que se chama de petista histórico — um fundador, prefeito pioneiro (junto, aliás, com Celso Daniel) nos projetos-piloto que testaram o modelo de ocupação do petismo. O senhor é um sobrevivente à procura de sobreviver, e sabe que as acusações de um de dentro dinamitam o blá-blá-blá de que a elite se articula para derrubar as conquistas do povo. Não é mais um empreiteiro a destampar os fundos — fornidos de propina — para sustentar a expansão autoritária do partido, mas Antonio Palocci, o formulador da tal “Carta ao povo brasileiro”, um dos pilares do castelo de cera sobre o qual o PT erigiu sua farsa. O senhor sabe a força que tem — força que é também de barganha.
Por favor. Sua principal motivação não é que toda a verdade seja dita, sobre todos os personagens envolvidos; mas que alguma, sobre alguns, baste para um acordo que abrevie os anos de cadeia. Falar a verdade — ou convencer de que o faz — é sempre o melhor caminho a quem não tem alternativa. O senhor não decidiu colaborar com a Justiça por estar arrependido e disposto a contribuir para a apuração de crimes etc. A sua própria carta oferece os elementos indicativos de que não se compungiu senão dos erros de procedimento que afinal expuseram o assalto petista ao Estado.
O senhor é inteligente, mas vaidoso. E, quando se elogia, se trai. Lula não sucumbiu ao pior da política no melhor dos momentos de seu governo. Lula e o PT sempre foram Lula e o PT, e o que o senhor chama de melhor dos momentos é aquele, exato, em que o projeto de dominação petista encontrou o veio — o mito do pré-sal — por meio do qual se robustecer e avançar. O senhor, objetivamente, considerava isso necessário — e trabalhou pelo sucesso do aparelhamento: para ver em movimento, na prática, a própria definição de esquerda no poder, inflando o Estado para ampliar a superfície a ser pilhada. E estaria lá, a serviço, ainda hoje, não tivesse a casa, enfim, caído de vez.
Por isso chama de “mau governo” o de Dilma. Não por haver redobrado as apostas irresponsáveis do antecessor, mas porque, incompetente em todos os sentidos, acelerou o derretimento do legado artificial lulista, o que escancarou — sem dinheiro para novas defesas populistas — a “rede de sustentação corrupta” do esquema partidário.
O senhor sente saudade de quando a aprovação do governo Lula era de 95%, ambiente de fartura propício ao desenvolvimento do mais ambicioso projeto de tomada do Estado por um partido da história do Brasil. O senhor sente saudade de quando ainda havia petrodólares para comprar o engano alheio — essa, a saudade do vício, a essência de sua carta.
Carlos Andreazza é editor de livros
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