O que significam ainda "esquerda" e "direita"? Desde que, na Convenção da França revolucionária, os jacobinos sentaram-se à esquerda e os girondinos à direita, muita história rolou sobre essa distinção.
Uma definição precisa não existe mais -o que restou, talvez, a partir de extremos brutos, seja um estado de espírito genérico ligado a alguns princípios voláteis. Penso em mim mesmo, quem sabe ecoando um sentimento coletivo. Para colocar algum método nessa nuvem, vejo três campos em que se pode pensar a separação.
O primeiro é o comportamento diante de escolhas pessoais do nosso dia a dia. Descriminalização do aborto e liberação das drogas, por exemplo. Direitos dos negros e dos índios. Casamento gay e direitos dos transgêneros. Movimento feminista e igualdade das mulheres.
Aparentemente, essas seriam pautas quase que exclusivas da esquerda, embora em boa parte venham de movimentos nascidos num certo viés libertário capitalista, em defesa dos direitos individuais.
Descontando-se as muitas variáveis socio-históricas, econômicas e geográficas que se opõem ou interpenetram na guerrilha político-cultural, há um ponto em comum subjacente: o Estado deve ser laico e o princípio da responsabilidade pessoal é inalienável e intransferível.
O segundo campo, talvez o dominante, está na relação entre Estado e economia -é o que, pela história dos últimos dois séculos, mais marcadamente vem distinguindo, aos olhos do senso comum, esquerda e direita. Nesse sentido, o que define uma coisa e outra seria a concepção de Estado.
Uma das coisas que a ditadura militar instaurada nos golpes sucessivos de 1964 e 1968 me ensinou foi a desconfiar profundamente do Estado. Naqueles anos turbulentos, nutri diariamente um horror pela burocracia estatal, por seus carimbos, por sua violência, por seus generais, por seu controle, por sua censura, e principalmente pela sua opaca e intransponível estupidez.
Ia nisso o anarquismo individualista romântico que estava no coração dos anos 1960 e 1970 em que eu entrei de cabeça e marcou quem quer que vivesse naquele tempo.
Mas, para outra parte da minha geração, o efeito foi inverso, seguindo a esteira tradicional do país -o Estado seria o Xangrilá, a solução definitiva dos nossos problemas. Bastava tomá-lo nas mãos. Feito isso, o país daria um salto em direção ao paraíso. O modo mais simples de entender a questão está na guerra entre privatização e estatização.
Por este ângulo, o ditador Geisel e a presidente Dilma estariam curiosamente do mesmo lado, pranchetas criando estatais gigantescas e maravilhosas. Do ponto de vista econômico, ambos apenas cavalgavam o mesmo irresistível tiranossauro rex com uma cenoura quebrada a balançar-se adiante.
A grande conquista cultural da esquerda, de que decorre o seu resiliente poder político, está em vincular nos corações e nas mentes o primeiro pacote de valores -os direitos inalienáveis do indivíduo- com o segundo: precisamos de um Estado monstro para garantir a nossa liberdade. Assim, o mesmo brasileiro que defende o casamento gay, defende igualmente, no mesmo "combo político", os tentáculos estatais inarredáveis da Petrobras, do Banco do Brasil, dos Correios, mais o controle corporativo-sindical da educação brasileira em bolsões privilegiados, e assim por diante.
E o terceiro campo seria filosófico-religioso. O espírito da esquerda foi o herdeiro direto do espírito do cristianismo em dois aspectos revolucionários.
O primeiro é o conceito fundamental do cristianismo primitivo de que todas as pessoas são iguais perante Deus, o que, apesar da reza milenar de todos os santos, só se tornou de fato um ideário político consistente com o Iluminismo ateu e a Revolução Francesa.
O segundo aspecto é a ideia bizarra de que o mundo e a vida se dirigem inexoravelmente, ou dialeticamente (para os hegelianos), a uma redenção futura que dará um fim à história.
A teleologia cristã, ao criar uma narrativa única com começo, meio e fim, representou uma mudança radical na cosmologia da Antiguidade, fragmentária e circular.
A esquerda capturou integralmente a alma cristã milenarista, pondo-a a serviço de uma utopia estatal terrestre. É delírio, mas move o mundo.
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