O GLOBO - 29/04
Difícil será ver com clareza quem ficou de fora da pilhagem. Mas existem nomes merecedores de esperança
Há quase 18 anos o ex-governador Anthony Garotinho — que por sua experiência devia ser um expert no assunto — definiu o PT como o partido da boquinha, dizendo que eles já tinham uns 200 cargos em seu governo e ainda queriam mais. Não chegava a ser original. Era o que sempre se murmurou à boca pequena, mesmo antes que essas boquinhas tenham servido para que um prócer partidário, o então Chefe da Casa Civil, Jaques Wagner, reconhecesse no ano passado que, ao praticar o que sempre criticara, o partido se lambuzou.
A essa altura, desde o mensalão, isso já caíra na boca do povo. O petrolão só confirmou. Mas muitos seguidores ainda faziam boca de siri, preferindo não tomar conhecimento do óbvio.
Enquanto isso, a boquinha ia crescendo. Virando boca de caçapa, a engolir mundos e fundos. Sobretudo fundos. Mas a tática era negar e acusar os outros. Igualzinho ao sapo da velha piada que todo mundo ouviu na infância, mas não custa recordar.
Ia ter uma festa no céu . Foram contar ao sapo.
— Oba! — exclamou ele, arreganhando a bocarra.
— Vai ter muita comida, churrasco, doces.
— Oba! — e a boca se abriu ainda mais.
— Vai rolar tudo quanto é bebida, Muita birita mesmo.
— Oba! — exclamava ele, animado, cada vez escancarando mais a boca.
— Mas só vai quem tem boca pequena...
Como bom batráquio, imediatamente o sapo se adaptou, fez biquinho e disse com a boca bem apertada:
— Coitadinho do jacaré...
Para não ficar de fora da festança, trataram de se precaver. Como revelou o subitamente boquirroto Emílio Odebrecht em vídeo a que o país, boquiaberto, assistiu na semana passada, foi preciso reclamar com Lula. Mostrar que o pessoal dele estava com a goela muito aberta, passando de jacaré a crocodilo. Pedindo valores cada vez mais altos. Propina gerada pela grana dos nossos impostos, saída dos cofres públicos para as empreiteiras, sob a forma de superfaturamento, aditivos e demais malandragens e patifarias, antes de virar caixa dois e ir comprar apoios e vantagens no governo e no Congresso.
Agora todo mundo sabe. O pessoal apanhado com a boca na botija não teve outro jeito a não ser botar a boca no mundo. Caiu também na boca do povo, somando-se ao mensalão. Os bem-intencionados ou ingênuos começam a admitir autocríticas. Não dá mais para continuar na atitude do “Rouba mas faz para os pobres”. Nem do “Rouba mas divide comigo” ou do “Rouba porque é esperto, todo mundo rouba, se eu estivesse lá também roubava”, ao som do clássico do grande Geraldo Pereira : “ô, que samba bom / ô, que coisa louca/ eu também tô aí, tô aí, que que há?/ também tô nessa boca...”
Os tempos mudaram. A nova população carcerária mostra que já não dá para achar tão normal “O que dá de malandro regular, profissional/ Malandro com aparato de malandro oficial/ Malandro candidato a malandro federal/ Malandro com retrato na coluna social/ Malandro com contrato, com gravata e capital /Que nunca se dá mal...”
Alguns patifes começam a se dar mal. O jeito que alguns encontram para aliviar as penas é botar a boca no trombone. E neste artigo com trilha sonora, não dá para garantir que os que ainda estão de fora vão conseguir por muito tempo seguir o modelo do malandro Moreira da Silva e transferir aos comparsas a tarefa de se explicar com a justiça: “Vou desguiando na carreira/ A justa já vem/ E vocês digam/ Que estou me aprontando/ Enquanto eu vou me desguiando/ Vocês vão ao distrito/ Ao delerusca se desculpando...”
Mesmo mestres exímios em desguiar na carreira vão precisar dar alguma explicação mais convincente do que dizer que a vítima se suicidou. Ao menos, para tentar sobreviver, fingindo passar de jacaré a lagartixa, um bichinho tão útil para limitar a infestação de mosquitos que transmitem doenças...
Algumas pesquisas sugerem que não está mais dando para enganar tanta gente como antes. E sem enganar, nada se sustenta, porque toda essa força só se baseou mesmo é na enganação. Na mentira bem contada. O que não significa que muitos outros, de partidos variados, não se dedicassem às mesmas práticas — com maior ou menor requinte, há mais ou menos tempo, boca de calango ou camaleão. Ainda que sem mostrar a competência do que estamos descobrindo, na montagem de esquema tão azeitado para nos pilhar e para lascar com o futuro do país. Mas ninguém defende que se tenha bandido (ou político) de estimação.
O difícil vai ser ver com clareza quem ficou de fora da pilhagem e pode seguir em frente. Grandes celeiros de lideranças políticas — as universidades, o movimento estudantil e sindical — sofreram as distorções desse processo de mentira e corrupção. Rendidos, caíram de boca nas boquinhas. Mas existem nomes merecedores de esperança, entre uns poucos sobreviventes, boas revelações nas redes sociais ou entre ambientalistas e alternativos. Dá trabalho procurar. Mas é hora de sairmos de lanterna em punho atrás deles. Ano que vem tem eleição. Vamos precisar de gente decente. E competente, pelo amor de Deus.
Ana Maria Machado é escritora
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