Toda lei de alcance nacional é intrinsecamente antidemocrática
Mais um dos nós cegos que amarram a vida brasileira está prestes a ser atado pela trajetória dessa “lei de iniciativa popular” do Ministério Público que surfou a onda da luta contra a corrupção.
Nem entro no mérito das “10 Medidas”. Tudo está errado nessa história, a começar pela figura deformada de lei de iniciativa popular enfiada de última hora na Constituição de 88. Ferramentas de “democracia semidireta” como essa são uma inovação suíça dos meados do século 19 que foi incorporada à democracia americana na virada para o 20. Pouco menos de cem anos depois da inauguração do “governo do povo, pelo povo e para o povo”, em 1787, a excessiva “blindagem” dos representantes eleitos arquitetada pelos “Fundadores” tinha se revelado um trágico equívoco. Com mandatos garantidos até à eleição seguinte, como continuam sendo no Brasil, políticos corruptos estavam à vontade para se mancomunar com empresários corruptos e se locupletar impunemente, o que reduziu o sistema a uma ditadura de uma minoria articulada para explorar o povo.
Nada disso! A obra da sociedade é que precisava de garantias de estabilidade! E para obtê-la era preciso quebrar a dos representantes eleitos, que a comprometia, sem, no entanto, enfraquecer o “governo de representação”. As leis de iniciativa popular foram o primeiro instrumento da reforma permanente que começou ali e prossegue ininterrupta até hoje. Foi com elas que se instituíram, em etapas sucessivas, os complementos do “referendo” das leis dos Legislativos e do “recall” dos mandatos dos representantes, que inclui os de todos os funcionários que prestam serviços diretos ao público e, para isso mesmo, são eleitos por ele, e não nomeados por políticos.
O pressuposto dessas três ferramentas é, no entanto, o estrito respeito ao princípio federalista. Uma organização democrática – a prerrogativa de decidir, entre iguais, quem vai fazer o quê por ordem de quem – era um imperativo de sobrevivência para comunidades isoladas em territórios hostis longe das autoridades dos países de origem. Foi a mesma que funcionou por 300 anos no Brasil Colônia das Câmaras Municipais. O federalismo apenas institucionaliza a lógica da necessidade e consagra a sequência histórica desse segundo renascimento da democracia no “Novo Mundo”. Se o povo é a única fonte de legitimação das instituições republicanas, tudo o que envolver um só município – educação, segurança, normas de convivência, etc. – deve ser decidido (e bancado) por ele mesmo e só o que envolver mais de um município deve ser decidido (e bancado) pelo poder estadual. Nos EUA independentes essas unidades políticas e geográficas originais só concordaram em aderir a um ente nacional abstrato se os poderes dele ficassem restritos à defesa do território e da moeda nacionais e ao estabelecimento de relações internacionais, pois tudo contra o que se lutava, lá e nas “Vilas Ricas” do Brasil, era um poder centralizado colhendo, à distância, impostos abusivos e mandando despoticamente em gente diferente com necessidades diferentes apenas para sustentar seus privilégios.
Toda lei “nacional” fora desse escopo restrito é, portanto, intrinsecamente antidemocrática. Quanto à regra de maioria, ela é a menos ruim porque todas as alternativas são piores. Mas também as maiorias são tanto mais democráticas quanto menores forem os pedaços em que a massa dos eleitores for pulverizada. As ferramentas de “democracia semidireta” só se aplicam aos âmbitos municipal e estadual e num contexto de eleição distrital pura, não só por essa razão, mas também porque só esse sistema define quem exatamente é representante de quem e permite processos de cobrança e substituição perfeitamente legítimos. Qualquer cidadão pode iniciar uma petição de “recall”, propor uma nova lei ou convocar o “referendo” de uma lei baixada pelo Legislativo. Mas é preciso colher entre 5% e 7% (dependendo do município) das assinaturas dos eleitores do funcionário ou representante visado ou do eleitorado afetado pela lei proposta ou desafiada. Conferidas as assinaturas pelo secretário de Estado municipal ou estadual, função que existe especificamente para supervisionar a legitimação desses processos, fica a petição qualificada para ser submetida a um “sim” ou “não” de todos os eleitores daquele funcionário ou representante numa votação especial, no caso de “recall”, ou mediante a impressão da lei proposta ou desafiada na cédula da próxima eleição majoritária para aprovação ou rejeição de todos os eleitores do Estado ou município afetados por ela. Na de novembro passado, a média nacional de propostas do gênero nas cédulas nos EUA foi de 62.
Os Legislativos são, portanto, meros “pacientes” desses processos. Não podem alterar o que é decidido de forma tão transparente e inclusiva. O Judiciário pode, em alguns casos, interferir. Mas para desencorajar desvios há eleições de confirmação (ou não) também dos juízes de cada comarca a cada quatro anos. No âmbito federal há só processos indiretos de “impeachment”, que rarissimamente chegam a ser aplicados, pois o sistema vai sendo permanentemente higienizado ao longo do caminho.
Tendo recomendado reiteradamente a “democracia semidireta” adotada com variações em todo o mundo que funciona, chamo a atenção, agora, para as falsificações presentes em todas as ditaduras disfarçadas. Nossa lei torta, aberta apenas à iniciativa de corporações e fechada aos cidadãos comuns, pode, com muito boa vontade, ser considerada como uma brecha num sistema hermético que pode eventualmente ser usada para o bem. Mas dar a um indivíduo no STF o poder de fixar o precedente de que bastam umas tantas assinaturas para substituir 140 milhões de eleitores e impor leis intocáveis a todo o País terá o mesmo efeito do que tentou fazer o PT quando quis substituir o conjunto do eleitorado pelos seus “movimentos sociais” amestrados: será o tiro de misericórdia na esperança de uma democracia no Brasil.
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