O prudente é deixar as reservas em paz. O BC sempre terá a opção de gerenciá-las no âmbito da política cambial
Na discussão sobre o uso das reservas internacionais, o que mais se vê são propostas que lembram a célebre frase atribuída ao crítico americano Henry Louis Mencken: "Para todo problema complexo, existe uma resposta que é clara, simples e errada". Frequentemente, as reservas são tratadas como uma espécie de elixir universal, capaz de, em uma tacada, resolver velhos males da economia brasileira, tal como o da reduzida taxa de investimento. Contudo, no mundo real, desembaraçar-se de uma parte das reservas, ainda que com propósitos louváveis, pode trazer muitas complicações macroeconômicas.
Não é a primeira vez que a questão do uso milagreiro das reservas vem à baila. No início de 1993, quando eu era presidente do Banco Central, um prestigiado ex-ministro da Fazenda do regime militar tentou convencer o presidente Itamar Franco a utilizar parte das parcas reservas internacionais do país à época (cerca de 10% do seu valor atual) para a recuperação de estradas. O bizarro esquema previa o BC depositar dólares em agências do Banco do Brasilno exterior, que internalizaria os recursos, emprestando-os para o governo (federal e dos Estados) realizar obras nas rodovias. Não apenas seria um escancarado financiamento do BC ao Tesouro (vedado pela Constituição), como também um moto contínuo de emissão de moeda. Felizmente, o presidente Itamar ouviu nossas vozes de bom senso e não deu seguimento à ideia.
Mas deixando a história de lado, uma questão preliminar e fundamental hoje é saber se as reservas internacionais brasileiras - na casa dos US$ 378 bilhões - são de fato excessivas. Se o forem, o natural seria considerar a possibilidade de sua redução de algum modo, tendo em conta o oneroso custo representado pelo diferencial positivo entre as taxas de juros doméstica e internacional. Obviamente sem desrespeito à Constituição!
Muito embora não exista um consenso na teoria sobre o nível adequado (ou ótimo) de reservas internacionais, é praticamente consensual que as economias emergentes devem manter reservas acima do nível que seria requerido para as economias maduras. A razão é a maior exposição dos emergentes a choques de origem externa, principalmente os do tipo "sudden stops" em que há uma queda abrupta e não antecipada do financiamento externo.
De todo modo, não caberia neste espaço uma discussão ampla sobre o nível ótimo de reservas, pelo que fiquemos com a métrica empregada pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) que leva em conta fatores como a renda das exportações, o volume dos agregados monetários, a dívida de curto prazo e outros passivos externos do país. Pela tal métrica, o Brasil deveria ter no mínimo e de maneira conservadora algo como US$ 280 bilhões em reservas. A redução das reservas para tal nível poderia trazer uma economia fiscal da ordem de 0,6% do PIB ao ano.
Portanto, o Brasil teria cerca de US$ 100 bilhões de reservas excedentes a julgar pelos parâmetros do FMI. Mas o que fazer com este "excesso"? A ação "plain vanilla" seria desfazer-se dele por meio de vendas pelo BC de dólares no mercado cambial, com esterilização dos efeitos monetários por meio do resgate de títulos da dívida pública, em operações definitivas ou compromissadas.
Ocorre que as consequências macroeconômicas desse movimento estariam longe de ser triviais. No regime de taxas flutuantes de câmbio, a intervenção vendedora do BC apreciaria o câmbio, pelo menos de maneira transitória. A redução da taxa de juros básica poderia ser a solução para reequilibrar o mercado, mas o BC está constrangido pelo regime de metas de inflação.
Outra opção que tem sido aventada seria a utilização do "excesso" de reservas no financiamento de investimentos em infraestrutura, compensando assim a insuficiente oferta de recursos de longo prazo para o setor. Para tanto, fala-se na constituição de um fundo que canalizaria recursos para os projetos de infraestrutura, por meio da aquisição de debêntures ou por meio de outros instrumentos. Ocorre que tal tipo de ideia incorre fundamentalmente nos mesmos defeitos da sugestão feita a Itamar Franco nos idos de 1993. A primeira complicação surge na transferência das reservas do BC para o tal fundo.
Qual seria a contrapartida dada pelo Tesouro ao Banco Central? Títulos públicos? E isso não configuraria um financiamento vedado constitucionalmente? Alternativamente, poderia o Tesouro utilizar os recursos da Conta Única com tal propósito? Mesmo que ultrapassado esse óbice, há ainda a questão do descasamento de moedas. Os gastos em infraestrutura ocorrem majoritariamente em moeda nacional, o que implica a necessidade de venda de dólares pelo fundo (ou pelo tomador dos recursos) no mercado. O BC terá de optar entre deixar a moeda se apreciar ou comprar esses dólares que neste caso voltariam para as reservas internacionais! E para esterilizar sua intervenção - a fim de evitar que a taxa de juros no mercado monetário caia abaixo da meta da taxa Selic - o BC deve vender títulos, voltando a expandir a dívida em mercado. Bye-bye economia fiscal...
Por tudo isso, o prudente é deixar as reservas em paz. O BC sempre terá a opção de gerenciá-las no âmbito da política cambial, mas se desviar desse propósito pode trazer mais dor de cabeça do que se imagina. Seria um simplesmente uma resposta errada a um problema complexo.
Gustavo Loyola, doutor em economia pela EPGE/FGV, foi presidente do Banco Central e é sócio-diretor da Tendências Consultoria Integrada, em São Paulo.
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