No último dia 22 de agosto, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Ricardo Lewandowski, abriu uma fenda na agenda para encaixar uma visita. Recebeu em seu gabinete a senadora Kátia Abreu (PMDB-TO). Autorizada pela amiga Dilma Rousseff, Kátia foi conversar sobre a sessão de julgamento do impeachment, que ocorreria dali a nove dias, na manhã do dia 31.
Ex-ministra da Agricultura de Dilma, a senadora informou a Lewandowski que os aliados de Dilma apresentariam um requerimento inusitado aos 45 minutos do segundo tempo do julgamento do impeachment. Desejava-se votar separadamente a deposição de Dilma e a punição que poderia bani-la da vida pública por oito anos. Confirmando-se o afastamento da presidente, Kátia tinha a esperança de livrá-la do castigo adicional.
A senadora foi à presença de Lewandowski acompanhada de João Costa Ribeiro Filho, um personagem cujo anonimato não faz jus ao protagonismo que desempenhou no enredo que produziu mais uma jabuticaba brasileira: o impeachment de coalizão, no qual o PMDB, partido do “golpista” Michel Temer, juntou-se ao PT para suavizar a punição imposta à “golpeada” Dilma, preservando-lhe o direito de ocupar funções públicas mesmo depois de deposta.
Partiu de João Costa —um advogado mineiro que cresceu em Brasília e entrou para a política no Tocantins— a ideia de fatiar o julgamento do impeachment. Por ironia, o autor da tese que atenuou o suplício de Dilma já pertenceu aos quadros do tucanato. Em 2010, filiado ao PSDB, tornou-se suplente do senador Vicentinho Alves (PR-TO). Em 2011, trocou o ninho pelo PPL, Partido da Pátria Livre. Chegou a assumir a poltrona de senador por alguns meses, entre outubro de 2012 e janeiro de 2013.
Até ser apresentado à tese de João Costa, Lewandowski não cogitava realizar senão uma votação no julgamento do impeachment. Assim pedia o parágrafo único do artigo 52 da Constituição: “Nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis.”
Quatro dias antes da visita a Lewandowski, João Costa telefonara para Kátia Abreu. Pedira para ser recebido. Atendido, abrira a conversa afirmando à interlocutora que a defesa de Dilma cometia um erro comum nos tribunais de júri: preocupava-se obsessivamente com o mérito da acusação, sem atentar para a pena. Ele havia estudado a matéria. Apresentou um roteiro que levaria à votação fatiada. Passava, em essência, pelo regimento interno do Senado, que prevê o DVS (destaque para votação em separado) e pela Lei 1.079, que contempla a votação em fatias.
Kátia Abreu, até então mergulhada no esforço para tentar conquistar os 28 votos que enterrariam o pedido de impeachment, impressinou-se com os argumentos de João Costa. “Liguei para a Dilma”, recordou a senadora, numa conversa com o blog. “Preciso ir aí, tenho um assunto seríssimo para falar com a senhora. É particular, sem ninguém por perto.” Kátia rumou para o Palácio da Alvorada. Levou João Costa a tiracolo. Imaginou que a amiga reagiria mal à prosa. Falar sobre dosimetria de pena àquela altura significava admitir que a condenação era mesmo inevitável. “Para minha surpresa, ela entendeu e recebeu muito bem.”
Sabendo-se praticamente cassada, Dilma autorizou Kátia Abreu a dar sequência à articulação. Por sugestão da senadora, organizou-se uma reunião com José Eduardo Cardozo, o advogado petista de Dilma. Que também reagiu com naturalidade. Firmou-se um pacto de sigilo. A notícia de que Dilma já guerreava pela atenuação do castigo seria interpretada como símbolo da rendição. Algo que a confinada do Alvorada preferia não admitir em público.
Informado da articulação por Dilma, Lula comentaria mais tarde, em privado, que enxergou sensatez na estratégia de cuidar também da pena que poderia ser imposta a Dilma. A própria Kátia Abreu cuidou de comunicar os planos ao presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL). Apresentado ao roteiro, Renan entusiasmou-se. Disse que considerava “certíssimo” livrar a ex-aliada da proibição de ocupar cargos públicos por oito anos. “A Dilma merece que a gente faça isso por ela.”
Kátia pediu calma a Renan. Esclareceu que o fatiamento ainda era o Plano B. “Não entrego o jogo antes da hora. Vamos até o final.” Sem alarde, um assessor da liderança do PT foi acionado para elaborar o requerimento para desmembrar a votação do impeachment em duas. O documento foi formalmente apresentado pelo líder do PT, Humberto Costa (PE).
Na conversa com Lewandowski, Kátia Abreu testemunhou um telefonema do presidente do Supremo para o secretário-geral da Mesa do Senado, Luiz Fernando Bandeira, um dos principais assessores de Renan nas sessões plenárias. O ministro pediu-lhe que estudasse o tema. A ordem foi cumprida com esmero. No dia da sessão, Lewandowski estava munido de um autêntico tratado. Não havia questão levantada pelos rivais de Dilma que ele não trouxesse a resposta na ponta da língua.
Afora os encaminhamentos de praxe —dois senadores a favor e outros dois contra—Renan Calheiros discursou, ele próprio, em defesa do abrandamento da punição de Dilma. ''No Nordeste, costumamos dizer uma coisa: 'Além da queda, coice'. Não podemos deixar de julgar, mas não podemos ser maus, desumanos.'' Foi nesse diapasão que os senadores livraram Dilma do coice da inabilitação para o exercício de funções públicas depois de tê-la derrubado da Presidência da República. Tudo com o aval de Lewandowski.
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