Na filosofia da ciência, distinguimos entre o contexto da descoberta e o da justificação. No primeiro, fatores extracientíficos exercem todo o tipo de influência. O exemplo sempre citado é o do químico alemão August Kekulé (1829-96), que teve o insight de como seria a estrutura dos anéis de benzeno ao sonhar com uma serpente engolindo a própria cauda. É claro que, na hora de justificar sua descoberta, não recorreu a serpentes, mas a argumentos científicos.
Algo parecido ocorre no mundo do Judiciário. A crise entre o STF e o Ministério Público teve como gatilho um fator extrajurídico, mais especificamente o corporativismo. Gilmar Mendes estrilou contra o MP e os vazamentos porque a vítima, desta vez, foi seu colega e amigo Dias Toffoli.
De modo análogo, existem razões para suspeitar que membros do MP utilizem as delações (e sua divulgação) de forma política, com o propósito de fazer avançar sua agenda, também ela um pouco corporativista, de reforma da legislação. A rápida sucessão de manifestos de associações de procuradores apoiando o MP só escancara esse corporativismo.
O fato de as motivações de nossos protagonistas não serem puramente jurídicas não implica que não haja importantes questões técnicas a discutir no que diz respeito aos vazamentos, à suspensão da delação de Léo Pinheiro e, principalmente, às dez propostas do MP de combate à corrupção, que incluem tanto ideias interessantes como despautérios.
Pretendo, em colunas futuras, analisar alguns desses tópicos. Em relação à delação de Pinheiro, não parece fazer muito sentido suspendê-la —pelo menos não enquanto o MP não der uma explicação plausível dos motivos que o levaram a isso.
De qualquer forma, a exemplo de Kekulé no contexto da justificação, é necessário que a discussão se trave em termos técnicos, não recorrendo a sonhos, serpentes ou a delírios de poder.
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