ESTADÃO - 30/08
A legitimação das provas pela boa-fé não é uma invencionice nem serviria para legalizar atos de má-fé
A Operação Lava Jato revelou a existência de uma corrupção histórica e sistêmica, arraigada em diversos níveis de governo. A investigação conscientizou a sociedade sobre a importância de se enfrentar esse problema, o que significa atacar as condições que o favorecem no Brasil. Dentre os diversos fatores que contribuem para esse fenômeno, dois saltam aos olhos no contexto brasileiro: as falhas do sistema político e a impunidade da corrupção.
Para corrigir as primeiras é necessária uma ampla reforma política. Contra a impunidade, que alimenta a corrupção, segundo os maiores estudiosos do assunto no mundo, o Ministério Público lançou 10 Medidas Contra a Corrupção. Estas foram abraçadas pela sociedade e levadas ao Congresso Nacional com mais de 2 milhões de assinaturas.
Cada uma das dez medidas apresenta um problema e oferece uma solução. A sétima proposta é talvez a mais polêmica. Ela identifica como problema a existência de brechas na lei que conduziram à anulação de uma série de grandes investigações com base numa teoria de provas ilícitas capenga, que foi importada dos Estados Unidos pela metade, provocando um desequilíbrio. Foi trazida a primeira metade da teoria, que protege os direitos do réu, mas não a outra metade, que protege os direitos da vítima e da sociedade.
Dentre os casos anulados estão as Operações Castelo de Areia, Boi Barrica, Pôr do Sol, Navalha, Poseidon, Dilúvio, White Martins e Diamante. Com sua queda, graves crimes de corrupção restaram impunes e foi cancelada a maior multa aplicada contra um cartel, de R$ 1,76 bilhão. A solução proposta é a legitimação de provas obtidas de boa-fé. Houve, recentemente, quem atacasse a proposta afirmando que isso poderia justificar torturas – como se torturas pudessem ser praticadas de boa-fé –, o que me leva a esclarecê-la.
Tomemos a Operação Castelo de Areia por paradigma. Se ela não tivesse sido anulada, poderia ter antecipado a Lava Jato em seis anos, evitando que bilhões fossem desviados da Petrobrás. De fato, aquela operação se debruçou sobre evidências de pagamentos de propinas a funcionários públicos e políticos, feitos por uma empresa que veio a ser, mais tarde, a ponta do fio do novelo da Lava Jato.
A investigação foi, contudo, completamente anulada pelo Superior Tribunal de Justiça porque se entendeu que a primeira decisão judicial, que determinou a quebra do sigilo telefônico dos investigados, não estava suficientemente fundamentada. Caindo por terra tal decisão, todos os atos e provas decorrentes foram derrubados, por serem considerados “frutos da árvore envenenada” (“fruits of the poisonous tree”). Como peças de dominó que caem umas sobre as outras em sequência, foram anulados todos os monitoramentos telefônicos e as buscas e apreensões que apontavam para um escândalo de corrupção.
Nos Estados Unidos, o exato país de onde importamos a teoria da prova ilícita, a solução seria completamente diferente: as provas teriam sido preservadas; os criminosos, punidos; e o dinheiro, recuperado; gerando um efeito inibidor contra a corrupção. Como bem coloca a Suprema Corte norte-americana, o objetivo da exclusão das provas ilícitas (“exclusionary rule”) é proteger o cidadão contra abusos do Estado.
A fim de que a polícia não pratique tortura para obter informações ou entre em residências sem mandado para colher provas, as evidências eventualmente colhidas em decorrência de abusos policiais são excluídas do processo. Contudo, se a polícia tiver agido de boa-fé, lastreada numa decisão judicial com aparência legítima, a exclusão da prova não é realizada, porque não serviria para conter abusos.
Um famoso precedente norte-americano, US versusLeon (1984), traçou uma linha divisória entre abuso da polícia e erro da Justiça. Uma decisão judicial razoável, emitida por um juiz imparcial, o qual tem por objetivo proteger os direitos fundamentais do réu na investigação, mesmo que venha a ser revisada, legitima a ação policial dela decorrente.
A revisão de decisões judiciais por instâncias superiores deve ser encarada como algo natural e próprio do sistema jurídico. A reversão não torna a decisão original “ilícita”. Afinal, como diz o ditado, “cada cabeça, uma sentença”. Existe bastante abertura na lei e na valoração das provas, o que acarreta conclusões judiciais diferentes, juridicamente possíveis, sobre uma mesma realidade.
Assim, em contextos nos quais tenha havido uma decisão judicial aparentemente legítima, excluir a prova não tem nenhuma finalidade útil, porquanto a polícia atuou de boa-fé e não se deve cercear o livre exercício da atividade jurisdicional. Portanto, a boa-fé deve excepcionar a regra de exclusão da prova – é a “good faith exception”.
A legitimação das provas pela boa-fé, em conclusão, não é uma invencionice nem serviria para legalizar atos de má-fé, como a tortura. A proposta tem origem num país que é berço da democracia mundial, da presunção da inocência e da proteção dos direitos individuais. Além disso, a medida busca restabelecer o equilíbrio de um sistema de ilicitudes manco, importado pela metade dos Estados Unidos, deixando uma brecha que derrubou uma série de operações que revelaram crimes que sangram o nosso país.
Porque as dez medidas têm um forte fundamento, mais de mil entidades aderiram a elas, incluindo dezenas de entidades de juízes, promotores, procuradores da República e advogados. É possível discordar de modo legítimo da solução proposta, contudo se espera respeito a essas entidades e que a crítica seja feita de modo construtivo e fundamentado.
A impunidade da corrupção é inegável. Àqueles que discordam das soluções propostas cumpre o ônus de oferecer propostas alternativas. Fica, aqui, o desafio: a cada crítica, uma solução.
*Procurador da República, é coordenador da força-tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba
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