O sistema conseguiu um razoável grau de blindagem
Soltar o ex-ministro Paulo Bernardo após seis dias de prisão foi um marco. Não por causa da controvérsia jurídica em torno da decisão do ministro do STF, Dias Toffoli. Não faltam nos últimos tempos decisões judiciais inteiramente fora da curva da jurisprudência. A soltura sinaliza principalmente o objetivo de pôr freio ao voluntarismo da turma de Curitiba e às prisões de prazo ilimitado da Lava-Jato.
Como a prisão foi decretada por outro juiz que não Sérgio Moro, é a oportunidade perfeita para testar a nova velha maneira de lidar com o assunto sem cutucar diretamente a onça da moralidade nacional. Estabelecer que políticos sem privilégio de foro responderão a seus processos em liberdade significa que políticos com privilégio de foro poderão com muito mais razão dormir tranquilos.
É mais uma peça no contra-ataque organizado do sistema político para retomar pelo menos parte do controle sobre seu próprio destino. A senha foi dada pela divulgação, há cinco semanas, das gravações de Sérgio Machado que incriminavam toda a cúpula histórica do PMDB. E o primeiro alvo do contra-ataque foi o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot. A prisão de Delcídio do Amaral, líder do governo, senador no exercício de seu mandato, no final de novembro de 2015, foi aprovada pelo Senado sem quase nenhum ruído, a toque de caixa. O pedido tinha sido feito por Janot e tinha sido aceito pelo STF.
Já quando Janot pediu a prisão de José Sarney, Renan Calheiros e Romero Jucá a partir de gravações muito mais comprometedoras, o estardalhaço da reação foi ouvido por toda parte. O pedido foi taxado de descabido, excessivo e arbitrário. Mais que isso, foi negado pelo STF. A partir daí, Janot foi acusado de ser responsável pelo vazamento dos vídeos estarrecedores de Sérgio Machado e ameaçado de impeachment. Pela primeira vez desde o início da Lava-Jato, um vazamento foi criminalizado. E Janot foi para a defensiva. Na ofensiva, Renan Calheiros ameaça agora aprovar projeto de lei que, entre outras coisas, pune quem der "início a persecução penal sem justa causa fundamentada".
Também fazem parte do contra-ataque eliminar focos de resistência ao governo interino. O mais saliente talvez tenha sido o dirigido à turma da cultura. Se a turma incomoda, se é eficaz em fazer barulho no país e no exterior, operações da Polícia Federal que mostram falcatruas na lei de incentivo à cultura ajudam a confundir joio e trigo. Não têm nada que ver com o pessoal que ocupou prédios por todo o país, ou que levantou cartazes em tapetes vermelhos para protestar contra o governo interino. Mas são suficientes para levantar a suspeita e a dúvida de que por trás de um artista também possa se esconder um criminoso.
Outras operações da Polícia Federal atendem a outro objetivo, complementar. Se não fosse uma ofensa muito grave ao filme de Michael Curtiz, deveriam todas se chamar "Operação Casablanca". Porque seguem a máxima do chefe de polícia que, ao final do filme, manda prender "os suspeitos de sempre". Na versão local, são personagens conhecidos das páginas policiais da política, de filme já bem queimado, Carlinhos Cachoeira à frente. Com isso, garante-se que o show continue, só que bem longe dos políticos, especialmente aqueles com mandato. Deslocamentos de delegados da Lava-Jato para outras funções sem que substitutos tenham sido designados fazem parte do novo quadro.
O contra-ataque já produziu confiança suficiente no interior do sistema político para, por exemplo, permitir a retirada da urgência das medidas anticorrupção da pauta de votações da Câmara. Elaborada pelo Ministério Público, sob a liderança da força-tarefa da Lava-Jato, as medidas foram recebidas pelos deputados com festa. Tietaram o procurador Deltan Dallagnol, prometeram urgência e empenho, tiraram fotos e distribuíram abraços. E, em seguida, mandaram um beijinho no ombro de Brasília para Curitiba. Para completar a chacota, o Senado ameaça liberar o funcionamento dos cassinos ainda esta semana, contra todas as advertências do Ministério Público sobre o risco de esses estabelecimentos se tornarem verdadeiras fábricas de lavagem de dinheiro.
Com esse bem organizado contra-ataque, Michel Temer caminha para cumprir a primeira promessa de campanha que fez a seu eleitorado. A impressionante rapidez com que alcançou o objetivo é um dos fatores que explicam a confiança e a segurança que o governo interino passou a demonstrar a partir da semana passada. É um governo que pode se orgulhar de ter conseguido devolver ao sistema político condições mínimas para funcionar segundo os padrões em que funcionou nas últimas décadas. É um governo que se sente suficientemente forte agora para consolidar a restauração da normalidade de uma república pemedebista.
Pode parecer cedo para tanta confiança, especialmente em vista da permanente caixinha de surpresas que é a Lava-Jato. Mas confiança é fundamental, tanto em política quanto em economia. Consegue-se com ela apoio no Congresso e investimento produtivo. E não é pouca coisa o sistema ter conseguido contra-atacar e colocar na defensiva a Lava-Jato mesmo tendo no colo o terremoto das gravações de Sérgio Machado. Mostra que um razoável grau de blindagem foi alcançado. Não é garantia de tranquilidade, mas é incomparavelmente menos inseguro para a política oficial do que o clima que prevaleceu até o afastamento de Dilma Rousseff.
Foi até agora apenas um contra-ataque e não um movimento que tenha definitivamente colocado a Lava-Jato em ritmo de lavagem manual e a seco, sem pressa. Mas foi suficiente para gerar no sistema a expectativa de que a punição de políticos foi estendida para um horizonte agora distante e imprevisível. Foi suficiente para gerar a expectativa de que a responsabilização de políticos por crimes será muito mais restrita e restritiva, indo imediatamente para o cadafalso apenas um ou outro dos suspeitos de sempre, Eduardo Cunha à frente. A realização ou não dessas expectativas depende agora de como a turma da Lava-Jato irá reagir ao contra-ataque.
Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.
Soltar o ex-ministro Paulo Bernardo após seis dias de prisão foi um marco. Não por causa da controvérsia jurídica em torno da decisão do ministro do STF, Dias Toffoli. Não faltam nos últimos tempos decisões judiciais inteiramente fora da curva da jurisprudência. A soltura sinaliza principalmente o objetivo de pôr freio ao voluntarismo da turma de Curitiba e às prisões de prazo ilimitado da Lava-Jato.
Como a prisão foi decretada por outro juiz que não Sérgio Moro, é a oportunidade perfeita para testar a nova velha maneira de lidar com o assunto sem cutucar diretamente a onça da moralidade nacional. Estabelecer que políticos sem privilégio de foro responderão a seus processos em liberdade significa que políticos com privilégio de foro poderão com muito mais razão dormir tranquilos.
É mais uma peça no contra-ataque organizado do sistema político para retomar pelo menos parte do controle sobre seu próprio destino. A senha foi dada pela divulgação, há cinco semanas, das gravações de Sérgio Machado que incriminavam toda a cúpula histórica do PMDB. E o primeiro alvo do contra-ataque foi o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot. A prisão de Delcídio do Amaral, líder do governo, senador no exercício de seu mandato, no final de novembro de 2015, foi aprovada pelo Senado sem quase nenhum ruído, a toque de caixa. O pedido tinha sido feito por Janot e tinha sido aceito pelo STF.
Já quando Janot pediu a prisão de José Sarney, Renan Calheiros e Romero Jucá a partir de gravações muito mais comprometedoras, o estardalhaço da reação foi ouvido por toda parte. O pedido foi taxado de descabido, excessivo e arbitrário. Mais que isso, foi negado pelo STF. A partir daí, Janot foi acusado de ser responsável pelo vazamento dos vídeos estarrecedores de Sérgio Machado e ameaçado de impeachment. Pela primeira vez desde o início da Lava-Jato, um vazamento foi criminalizado. E Janot foi para a defensiva. Na ofensiva, Renan Calheiros ameaça agora aprovar projeto de lei que, entre outras coisas, pune quem der "início a persecução penal sem justa causa fundamentada".
Também fazem parte do contra-ataque eliminar focos de resistência ao governo interino. O mais saliente talvez tenha sido o dirigido à turma da cultura. Se a turma incomoda, se é eficaz em fazer barulho no país e no exterior, operações da Polícia Federal que mostram falcatruas na lei de incentivo à cultura ajudam a confundir joio e trigo. Não têm nada que ver com o pessoal que ocupou prédios por todo o país, ou que levantou cartazes em tapetes vermelhos para protestar contra o governo interino. Mas são suficientes para levantar a suspeita e a dúvida de que por trás de um artista também possa se esconder um criminoso.
Outras operações da Polícia Federal atendem a outro objetivo, complementar. Se não fosse uma ofensa muito grave ao filme de Michael Curtiz, deveriam todas se chamar "Operação Casablanca". Porque seguem a máxima do chefe de polícia que, ao final do filme, manda prender "os suspeitos de sempre". Na versão local, são personagens conhecidos das páginas policiais da política, de filme já bem queimado, Carlinhos Cachoeira à frente. Com isso, garante-se que o show continue, só que bem longe dos políticos, especialmente aqueles com mandato. Deslocamentos de delegados da Lava-Jato para outras funções sem que substitutos tenham sido designados fazem parte do novo quadro.
O contra-ataque já produziu confiança suficiente no interior do sistema político para, por exemplo, permitir a retirada da urgência das medidas anticorrupção da pauta de votações da Câmara. Elaborada pelo Ministério Público, sob a liderança da força-tarefa da Lava-Jato, as medidas foram recebidas pelos deputados com festa. Tietaram o procurador Deltan Dallagnol, prometeram urgência e empenho, tiraram fotos e distribuíram abraços. E, em seguida, mandaram um beijinho no ombro de Brasília para Curitiba. Para completar a chacota, o Senado ameaça liberar o funcionamento dos cassinos ainda esta semana, contra todas as advertências do Ministério Público sobre o risco de esses estabelecimentos se tornarem verdadeiras fábricas de lavagem de dinheiro.
Com esse bem organizado contra-ataque, Michel Temer caminha para cumprir a primeira promessa de campanha que fez a seu eleitorado. A impressionante rapidez com que alcançou o objetivo é um dos fatores que explicam a confiança e a segurança que o governo interino passou a demonstrar a partir da semana passada. É um governo que pode se orgulhar de ter conseguido devolver ao sistema político condições mínimas para funcionar segundo os padrões em que funcionou nas últimas décadas. É um governo que se sente suficientemente forte agora para consolidar a restauração da normalidade de uma república pemedebista.
Pode parecer cedo para tanta confiança, especialmente em vista da permanente caixinha de surpresas que é a Lava-Jato. Mas confiança é fundamental, tanto em política quanto em economia. Consegue-se com ela apoio no Congresso e investimento produtivo. E não é pouca coisa o sistema ter conseguido contra-atacar e colocar na defensiva a Lava-Jato mesmo tendo no colo o terremoto das gravações de Sérgio Machado. Mostra que um razoável grau de blindagem foi alcançado. Não é garantia de tranquilidade, mas é incomparavelmente menos inseguro para a política oficial do que o clima que prevaleceu até o afastamento de Dilma Rousseff.
Foi até agora apenas um contra-ataque e não um movimento que tenha definitivamente colocado a Lava-Jato em ritmo de lavagem manual e a seco, sem pressa. Mas foi suficiente para gerar no sistema a expectativa de que a punição de políticos foi estendida para um horizonte agora distante e imprevisível. Foi suficiente para gerar a expectativa de que a responsabilização de políticos por crimes será muito mais restrita e restritiva, indo imediatamente para o cadafalso apenas um ou outro dos suspeitos de sempre, Eduardo Cunha à frente. A realização ou não dessas expectativas depende agora de como a turma da Lava-Jato irá reagir ao contra-ataque.
Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.
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