Aos 54 anos, cheguei à idade em que cobro dos interlocutores a objetividade necessária. Com mais tempo pela frente, talvez eu condescendesse com imprecisões. Mas tenho pressa, não minto. E deixo claro: recomendo aos jovens que não tolerem feitiçarias intelectuais. É perda de tempo.
Nesta semana, três doutores, cada um em seu ofício, convocaram em mim o apreciador da matemática e da física, as disciplinas das quais fui monitor no ensino médio, que se chamava "colégio". Sempre que alguém começa a passear pela metafísica, eu protejo a minha carteira existencial.
Elio Gaspari, uma espécie de decano moral do jornalismo –de tal sorte o é que eu, elogiosamente, o apelidei cá comigo de "aiatoélio"–, escreveu uma coluna (http://goo.gl/x2Iafj) nesta Folha intitulada "Há golpe". No muito antigamente, uma das disciplinas próximas da matemática era a gramática. Reaproximo-as.
Um tantinho de filosofia da linguagem a partir da análise sintática.
Gaspari não escreveu "impeachment é golpe", circunstância em que haveria um sujeito ("impeachment"), um verbo de ligação ou cópula, como era chamado ("é"), e um predicativo do sujeito ("golpe"), com um substantivo fazendo as vezes de adjetivo ("derivação imprópria"). Se alguém diz que "impeachment é golpe", elimina circunstâncias e história e se fixa numa imanência. Nesse caso, o impeachment carrega a sua qualidade ou estado.
Como Gaspari não é burro –ou "aiatoélio" não seria–, ele optou pelo "há golpe".
Sua coluna, de fato, nega que o impedimento carregue em si a imanência inconstitucional e ilegal. Ele reconhece que, ainda que Dilma não pudesse responder pelas pedaladas (e a perícia não entrou nesse mérito), bastaria a edição dos decretos de créditos suplementares, sem autorização do Congresso, para caracterizar o crime de responsabilidade.
O autor, então, driblou imanências e escolheu a fórmula "há golpe". Ah, que mal fizeram os "modernos" aos brasileiros, né?, ao eliminar o ensino da gramática em benefício da "interpretação de texto", que é o doutor Thomás Turbando da linguagem.
O "há" de Gaspari é verbo transitivo direto; "golpe" é objeto direto, e essa é uma Oração Sem Sujeito – ou de sujeito inexistente. Por isso, se eu perguntar ao autor quem deu o golpe, ele não conseguirá me dizer. Se eu quiser passar a oração para a voz passiva, não tenho como porque, inexistindo sujeito na voz ativa, não há agente da voz passiva. Gaspari optou por uma fórmula gramatical que o exime de dizer aos brasileiros quem golpeou quem.
Como ele nega, em sua coluna, a fórmula "impeachment é golpe", mas diz que "há golpe", estamos diante do "Gato de Schrödinger" da política, que pode ser chamado de "Gato de Gaspari": há uma realidade que, não sendo golpe, porque isso ensejaria um sujeito, existe, no entanto, como objeto direto de um verbo sem sujeito. É o golpe quântico!
Não é Reinado Azevedo quem cobra uma resposta do autor. É a gramática.
Ancestral como os primeiros grunhidos.
Os outros dois que provocaram as minhas virtudes matemáticas, físicas e nunca metafísicas foram Rodrigo Janot e Roberto Barroso. Ficam para outras colunas.
Lá se foram os meus caracteres todos. Eu me apaixonei pelo Gato Quântico de Gaspari. Aquele que, embora não sendo, há.
2 comentários:
Genial
Fanrastico artigo!
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