terça-feira, junho 21, 2016

Cuidado com a antipolítica - SERGIO FAUSTO

O Estado de S. Paulo - 21/06

Congresso, partidos organizados para disputar eleições e políticos profissionais eleitos: instituições com prestígio baixo e cadente no Brasil e, em graus variados, em todos os países democráticos. É tarefa inglória defendê-los nos dias que correm. E, no entanto, por isso mesmo, é hora de fazê-lo, pois elas constituem um trio indispensável à democracia representativa. Para que não se a interprete como uma defesa indiscriminada do nosso sistema político, cabe ganhar uma certa perspectiva histórica para só depois chegar à cena brasileira atual.

Comecemos pela identificação dos principais inimigos históricos da democracia representativa: os movimentos e regimes nazi-fascistas e comunistas que marcaram o século 20 com um longo e largo rastro de sangue.

Com a vitória sobre o nazi-fascismo em 1945 e o colapso do socialismo real em 1991, a democracia representativa triunfou como valor, impondo-se sobre seus inimigos “externos” no plano das ideias e da política. Num paradoxo apenas aparente, passou então a ser assombrada por seus próprios fantasmas. Sem o contraste com os regimes totalitários, os seus defeitos e imperfeições se tornaram mais visíveis: as tendências à oligarquização dos partidos, à captura dos sistemas políticos por “interesses especiais”, ao descolamento entre os políticos profissionais e os cidadãos comuns.

Nos últimos anos, o desencanto com a democracia se espalhou pelo mundo (e não apenas nos países mais afetados pela crise financeira de 2007/2008, o que mostra não ser a economia o único fator a explicá-lo). Ele produziu dois efeitos de sinais opostos: de um lado, a rejeição à política, vista como uma atividade intrinsecamente nociva à sociedade; de outro, uma adesão à política de alta intensidade, em crítica frontal aos Parlamentos, partidos e políticos profissionais, em nome da participação direta dos cidadãos nas decisões de governo.

Na América Latina, onde já se enfraquecia a memória das ditaduras militares, deu-se o mesmo fenômeno. A partir do final da década de 1990, o desencanto com a democracia tomou o caminho da “política de alta intensidade” naqueles países em que o sistema partidário anterior colapsou sob o peso de crises agudas na economia e na representação política. Surfando a onda global de crítica à democracia representativa, movimentos e governos de orientação “bolivariana” adotaram mecanismos de representação direta e formas de mobilização popular que, sob o pretexto de torná-la mais autêntica, submeteram a democracia representativa ao seu projeto hegemônico. Quem mais longe levou esse experimento foi o chavismo, a tal ponto que a Venezuela é hoje uma autocracia com alguns disfarces formais.

O Brasil seguiu uma trajetória distinta. Ao chegar ao poder, o PT encontrou um sistema de partidos comparativamente mais estruturado, no qual ele próprio desempenhava um papel importante, operando no âmbito de instituições políticas e jurídicas de melhor qualidade. A aprovação da cláusula de barreira em 1995, com previsão de entrada em vigor dez anos depois, parecia apontar para a evolução positiva do sistema partidário. Uma combinação de fatores, porém, levou-o à degeneração progressiva, entre eles a desafortunada decisão do STF de derrubar a cláusula de barreira. Não se pode atribuir a degeneração do sistema político-partidário inteiramente aos governos do PT, mas é inegável a sua responsabilidade nesse processo (anabolizando legendas de aluguel, organizando em escala sem precedente a acoplagem do financiamento de campanha à corrupção nas estatais e em empresas privadas prestadoras de serviços às estatais, etc). Embora tenham cuidado de manter ativa e bem financiada a sua base militante organizada e buscado avançar na construção de conselhos dominados por “representantes da sociedade civil” ligados ao partido, os governos petistas não chegaram a ser “bolivarianos”. Mais do que adesão à política de alta intensidade, apostaram na expansão do consumo para ampliar e manter seu apoio na sociedade.

Hoje temos um sistema político-partidário em frangalhos e uma sociedade frustrada com a quebra das expectativas de mais consumo (e melhores serviços públicos). Majoritariamente, ela rejeita a política e os políticos. Rejeição que só faz crescer à medida que a Lava Jato expõe as entranhas desse sistema político-partidário.

Sem dúvida, a sociedade deve estar atenta às tentativas de barrá-la ou limitar o seu alcance. Todavia, deve estar atenta também ao risco de que os fatos e versões decorrentes das investigações sejam instrumentalizados para fazer afundar em descrédito generalizado o Congresso, os partidos e os políticos profissionais, indiscriminadamente. Jogar tudo e todos na vala comum não fará o País avançar na construção de uma democracia melhor. A ideia de que um sistema político regenerado nascerá da destruição completa do atual é ilusória e perigosa, quando não autoritária. Trata-se, isto sim, de reformá-lo com objetivo de aperfeiçoar a democracia representativa, processo que não se dará da noite para o dia. Seu aperfeiçoamento deverá incorporar formas inovadoras de participação dos cidadãos na política, para tornar mais transparentes, fidedignas e sensíveis à sociedade as formas clássicas da representação, não para substituí-las. Parte (a menor parte, é verdade) dos partidos e dos políticos existentes é fundamental para que esse processo se dê com sucesso.

Com a Lava Jato chegando à sua temperatura máxima e o prestígio do sistema político ao seu ponto mais baixo, a sociedade brasileira será exigida em sua capacidade crítica e senso de proporção. À justiça cabe julgar com base em provas. Aos cidadãos, definir pelo voto e pela pressão sobre o sistema político quem merece cartão vermelho, cartão amarelo ou simples advertência verbal. A todos nós cabe nos empenhar para que o jogo democrático continue a ser jogado, com melhores regras e maior qualidade.


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