Uma fracassada operação de obstrução da Justiça, gesto final atestado de desespero, precipitou uma queda já quase inevitável
Dilma Rousseff desistiu de descer a rampa do Planalto. É pena: se o fizesse, teria a chance de olhar quatro vezes para trás — e entender o que deu errado.
A primeira mirada, em direção à fachada envidraçada, rememoraria o triunfo eleitoral de Lula em 2002, que já parece tão distante. O lulopetismo alcançou o poder prometendo ao povo que, dali em diante, tudo seria leite e mel, mas ofertando às elites o sacrifício de seus dogmas mais sagrados: na Carta ao Povo Brasileiro, o metalúrgico converteu-se em estadista, ajoelhando-se diante das tábuas da ortodoxia econômica.
Durante o primeiro mandato, Lula cumpriu o roteiro — e ganhou um beijo de Fortuna, a deusa da sorte. Velas enfunadas pela ascensão chinesa, singrando o mar do superciclo de commodities, o PIB expandiu-se 5,7% em 2004, 3,5% em 2005 e 4,5% no ano eleitoral de 2006. O crescimento do emprego, dos salários e da renda dos mais pobres (esta dopada pelo Bolsa Família), ergueu o presidente ao estatuto de mito. “Nunca antes na História” — nascia o refrão de um verde-amarelismo satisfeito, balofo e autocomplacente. A imagem daquela idade de ouro ainda deve estar refletida lá, na superfície de vidro do Palácio.
A segunda mirada iria para as colunas sinuosas traçadas por Niemeyer, que deixam entrever o monstro da incerteza. Na hora da glória, emergiam as sementes do fracasso. Uma chama-se “mensalão”; a outra, pré-sal.
O “mensalão” brotou no outono de 2005, expondo as entranhas de um projeto criminoso de perenização da hegemonia e iluminando uma encruzilhada. Diante dela, o lulopetismo rejeitou a estrada da “refundação”, preferindo trilhar a da reiteração, que conduziria ao abismo do “petrolão”. O Pré-Sal ingressou no palco político em 2006, como “a segunda independência do Brasil”, “uma dádiva de Deus” e um “bilhete premiado”, nas expressões de um Lula hipnotizado por sonhos desmedidos. Dali em diante, a política econômica seria contaminada pela ideologia.
Numa terceira mirada, ela olharia o parlatório, um lugar adequado para proclamações vazias. Guido Mantega sucedeu Palocci na Fazenda — e a Carta ao Povo Brasileiro foi silenciosamente incinerada. O “espetáculo do crescimento” interrompeu-se no final de 2008, sob o peso da crise global. Pressionando o acelerador anticíclico do crédito, do subsídio e da dívida, o governo propiciou uma rápida recuperação. Então, face ao ano eleitoral, dobrou a aposta, fabricando um crescimento do PIB de 7,8% em 2010 — e conduzindo uma fraude até a poltrona presidencial.
Lula é um pragmático amoral; Dilma, uma doutrinária obtusa. O giro tático lulista converteu-se em estandarte da economia política dilmista. A “nova matriz”, uma corrosiva mistura de populismo, ignorância e irresponsabilidade, destruiria o equilíbrio fiscal do país, devastaria as finanças da Petrobras e implodiria as contas do setor elétrico. Tudo isso sem produzir um novo ciclo de crescimento: depois dos 4% inerciais de 2011, o PIB ainda saltou 2% e 3,5%, até encostar-se nos 0,2% de 2014, que sinalizavam o túnel escuro da depressão. O lulopetismo esgotava-se junto com os soluços derradeiros da “globalização chinesa”.
Uma quarta e melancólica mirada seria dirigida ao fim da rampa, onde pretendiam se aglomerar militantes do PT, da CUT, do MST, do MTST e da UNE. A mentira grossa da campanha de 2014, “estelionato eleitoral”, na qualificação adotada até por Lula, é culpa de Dilma — e valeu-lhe um desprezo oceânico que removeu o chão no qual se erguia o governo. Já as revelações da Lava-Jato, uma narrativa judicial que remonta a 2005, derivam primariamente de Lula. O impeachment é o produto dessa soma: Dilma + Lula.
Epílogo poético, Dilma e Lula se reencontraram numa fracassada operação bufa de obstrução da Justiça. O gesto final, atestado de desespero travestido de prova de lealdade, precipitou uma queda já quase inevitável. Restam os punhos cerrados, os gritos de guerra, as palavras de ordem. Rituais de passagem.
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