ESTADÃO - 06/01
Em 1972, fui a uma conferência de antropologia no Cairo. No decorrer desse encontro de “sábios”, muita gente que eu conhecia exclusivamente de livro e idealizava como gênio tornou-se desgraçadamente humana. Eu os havia estudado, mas nas margens do faraônico Nilo – eles se transformaram em concorrentes, tangenciando uma familiar burrice.
Exceto a curiosidade de conhecer o professor Sol Tax (1921-1995), um dos modernizadores da antropologia americana e organizador do encontro, eu sabia que o alvo da reunião – produzir livros sobre todas as sociedades tribais do mundo – era muito ambicioso e muito americano. Mas, por trás disso, havia o Egito, o Cairo do cinema, as tais danças do ventre e a minha juventude.
No hotel Shepheard, vi um sujeito baixinho, energético e extremamente simpático que me recebeu dizendo: “Você deve ser o nosso homem do Brazil...” (com “z” mesmo). Sol era o dono da bola. Ao seu lado, estava o arqueólogo argentino Rex Pederneiras e um colega egípcio, Hassam Said. Registrei-me e quando soube do interesse de Rex nas danças do ventre, saímos com a desculpa de “conhecer a vida no Cairo”.
Said nos levou a um salão no qual bailarinas maravilhosas, saídas do Jardim das Delícias praticavam a nobre arte da dança do ventre. Apreciei o espetáculo assistido por um El Said intoxicado de orientalismo, tomei um uísque e vi como Rex, instigado pelo nosso companheiro egípcio, bebericava umas seis ou sete taças chá de menta. No dia seguinte, eu tinha ressaca, eles diarreia.
Comentei com Sol Tax, e dele recebi um conselho bíblico ou, quem sabe, talmúdico, inesquecível: em terras pouco conhecidas, coma muito pão!
Em 1977, fiz uma palestra em Chicago e visitei Sol Tax. Fui recebido com muito carinho e alegria. Informado das dificuldades da ditadura militar, o mestre me questionou sobre o Brasil. Externei pessimismo e preocupação. Ouvi o seguinte: “Eu vivi o macarthismo. Também passei por uma Alemanha alucinada pelo Holocausto e uma Europa em guerra. Tenha paciência: as coisas mudam, Roberto”.
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Em 1849, o grande Richard Wagner que, para o não menos grandioso Claude Lévi-Strauss, teria sido o verdadeiro inventor da análise estrutural dos mitos, decretou a que a Nona Sinfonia, de Beethoven, havia exaurido essa forma musical. Mal sabia ele que, depois disso, Brahms escreveria quatro sinfonias; Tchaikovski, seis; Dvorak, nove; Mahler, dez; Havergal Brian, 32 e Alan Hovhaness – para pararmos uma longa lista roubada de um belo ensaio de Alen Ross, lido na New Yorker –, 67!
As sinfonias continuam. Perderam seu viés teatral, são ouvidas em CD. Mas, como os mitos, elas dialogam entre si.
Do mesmo modo, o populismo-sebastianista, que garante riqueza e bem-estar para todos sem que ninguém perca coisa alguma, retorna e hoje está em cheque e choque. Como distribuir eleitoralmente sem destrambelhar a economia? Como fazê-lo pensando no Brasil e não no poder? Como substituir a formula “cuidar aos pobres”, para, por meio de escolas, saneamento, moradia e, sobretudo, igualdade cívica, mudar a vida dos menos favorecidos? O lulopetismo prometeu progresso, mas o resultado foi regresso – recessão e inflação. Isso para não falar na mendacidade como moda a qual, como as antigas sinfonias, ganharam em vigor e virtuosismo imaginativo.
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O Brasil em crise e os nossos zilionários calados. Quando a vida aperta, os pobres gritam e os ricos se calam, diz um ditado. Escrevi algumas vezes que a tradição brasileira de “políticas públicas” inspirava-se na “caridade”. Numa virtude teologal que, ao lado da fé e da esperança, fazem parte de um quadro religioso. O resultado é uma sociedade na qual cada qual todos sabem o seu lugar e tanto os ricos quanto os ideologicamente iluminados continuam falando dos pobres, mas garantindo suas famílias.
A caridade tem sido implacavelmente canibalizada pela política do ‘dar para receber’. Nosso surto petrolífero não resultou na filantropia de uma Fundação Rockefeller ou Ford, mas numa ponte amigável entre políticos e operadores organizados em locupletarem-se, debaixo da velha fachada de remediar uma desigualdade que os programas do governo perpetuam.
Vejam o contraste. Mesmo nesta era estadunidense de pikketys, de capitalismo narcisista e de aumento vergonhoso de desigualdade, a filantropia segue firme com os Bill Gates e os Mark Zuckerberg abrindo mão de parte do seu dinheiro. Aqui os ricos viram pobres e culpam o Estado... ou a polícia. Lá, eles assumem o seu lugar e, para a surpresa dos que imaginam que os capitalistas não conhecem o seu próprio sistema, discutem o lado negativo do capitalismo. Lá, o federalismo e a ética individualista do mercado e da competição revelam os defeitos do todo. E, como são os indivíduos que fazem a sociedade, os milionários tentam corrigi-la com a filantropia. Aqui, como partimos do centro e do todo, esquecemos do papel (e da responsabilidade) das partes. E, como quem “cuida” do sistema é o “governo” e não cada um de nós, esquecemos como os muito ricos podem contribuir para essa crise cuja causa jaz exatamente no controle indiscutível do sistema por uma elite que cabe num dedal.
Quando a vida aperta, os pobres gritam e os ricos se calam, diz um ditado
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