ESTADÃO - 09/11
A pressão das ruas pode crescer até o ponto que torne inviável a continuidade de Dilma Rousseff na Presidência
Em meu último artigo neste espaço (A presidente precisa tomar as rédeas do ajuste fiscal, 5/10/2015), argumentei que o impasse político que impede o avanço de medidas necessárias para estancar a hemorragia das contas públicas somente poderia ser rompido se o Poder Executivo agisse imediatamente. A sugestão era de que, sem retirar as propostas que tramitam aos trancos e barrancos no Congresso, o governo lançasse mão de aumentos de tributos e cortes adicionais de gastos que poderiam ser feitos sem necessidade de aprovação legislativa. Citei a elevação das alíquotas da Cide, do IOF e do IPI, que possibilitariam arrecadação adicional de cerca de R$ 45 bilhões, em 12 meses, sendo R$ 10 bilhões para Estados e municípios e R$ 35 bilhões para a União. Concomitantemente, deveriam ser efetuados fortes cortes de gastos, inclusive no PAC e em programas sociais. Reconheci que tais medidas são amargas e têm efeitos colaterais adversos, mas a situação é de emergência e exige medidas emergenciais.
De lá para cá o impasse político agravou-se e a única ação visível do governo foi intensificar a luta para evitar o impeachment. O déficit primário (receitas menos gastos não financeiros), incluídas as pedaladas fiscais, deverá alcançar, em 2015, montante próximo a R$ 120 bilhões. É útil lembrar que a proposta inicial do governo era de superávit de R$ 65 bilhões. Estamos, portanto, diante de uma frustração de resultado da ordem de R$ 185 bilhões, algo em torno de 3,1% do PIB. Qualquer semelhança com o desmascaramento dos dados fiscais da Grécia, em 2009, não é mera coincidência.
Diante deste quadro, tentarei, neste artigo, responder à difícil questão: qual o cenário mais provável para a economia brasileira nos próximos dois a três anos? O conceito de dominância fiscal pode ser útil para esse objetivo.
Dominância fiscal é tema controverso entre os economistas. Há várias abordagens diferentes e é difícil de caracterizar se a economia, num dado período, está ou não sob tal regime. Para os objetivos deste artigo, creio que a visão tradicional, apresentada por Sargent e Wallace (1981), é a mais útil. Por ela, o regime de dominância fiscal é aquele em que o governo gera resultado primário independentemente da necessidade de estabilização da relação dívida/PIB, e a autoridade monetária passiva perde o controle do nível de preços por ser forçada a produzir as receitas de senhoriagem (decorrente do poder de emitir moeda) necessárias à solvência da dívida pública. No sistema financeiro atual, isso somente é possível com a elevação da taxa de inflação.
A meu ver, o impasse político, os desastres registrados nas contas públicas em 2014 e em 2015 e a forte componente estrutural do desajuste fiscal brasileiro, principalmente Previdência, gastos sociais e financiamentos subsidiados via crédito direcionado, não deixam dúvidas de que o País se encontra em pleno regime de dominância fiscal. A reversão desse quadro só é possível mediante um ajuste fiscal profundo, muito improvável no atual governo.
Assumindo que tal ajuste não ocorra, e descartando o calote explícito da dívida, cujas consequências de médio e de longo prazos seriam desastrosas, a consistência macroeconômica dessa situação, como vimos, implica o crescimento contínuo da taxa de inflação. O Banco Central pouco poderá fazer para evitar que isso ocorra. O endurecimento da política monetária em resposta à elevação da inflação conduziria o estoque da dívida pública para além do seu limite sustentável. Isso provocaria elevação do risco soberano e, consequentemente, depreciação do real, em vez de apreciação, realimentando a inflação. Na verdade, como se pode deduzir da abordagem de Sargent e Wallace, essa inflação é necessária para garantir a solvência do governo.
Infelizmente, a situação da economia brasileira é ainda mais grave. O ano de 2015, mesmo que o ajuste fiscal tivesse sido um sucesso, já registraria recessão corretiva, decorrente do inchaço artificial de vários setores promovido pela chamada nova matriz macroeconômica, que incentivou o consumo à custa do erário e comprometeu irresponsavelmente o orçamento das famílias. Além disso, a dinâmica explicada nos parágrafos anteriores mina a confiança dos agentes econômicos, tanto empresários quanto consumidores, levando a quedas contínuas do investimento e do consumo das famílias. Somam-se, portanto, dois conjuntos de causas recessivas.
Dessa forma, o cenário que se apresenta para a economia brasileira, para o fim deste ano e, provavelmente, para os próximos dois ou três anos, é de crescimento da inflação e do desemprego. Sem um ajuste fiscal de verdade, não vejo como isso possa ser evitado.
População. No entanto, a análise que se apresentou até agora está incompleta, pois deixou de fora, de forma proposital, um ator importante, qual seja, a população brasileira, especialmente as classes sociais bem abaixo do pico da pirâmide de renda e riqueza.
Será que as dezenas de milhões de brasileiros que antes viam seus proventos serem corroídos pela inflação descontrolada e que passaram a desfrutar dos benefícios da relativa estabilidade de preços vão aceitar passivamente a perda dessa conquista? Da mesma forma, estes mesmos brasileiros que romperam a linha da pobreza e ingressaram na classe média consumidora vão abaixar a cabeça na medida em que se empobrecem novamente? Não sou analista político para responder de forma fundamentada essa questão, mas a intuição me diz que provavelmente não.
A pressão das ruas pode crescer até o ponto que torne inviável a continuidade de Dilma Rousseff na Presidência da República. Não cabe discutir como isso se daria, se por impeachment, renúncia ou cassação de mandato. O importante é que um novo governo e uma possível coalizão política poderiam antecipar o início do ajuste da economia brasileira. Não faria milagre, mas talvez o cenário econômico lúgubre que apresentei seja atenuado e a volta ao crescimento ocorra mais rapidamente.
*Economista, diretor-presidente da MCM Consultores, foi consultor do Banco Mundial, subsecretário do Tesouro Nacional e chefe da Assessoria Econômica do Ministério da Fazenda
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