O que cidadãos em geral, empresários e alguns políticos gostariam é que a corrupção no Brasil fosse reduzida. Sonhar não custa nada, há aqueles que desejam que ela simplesmente acabe. Nada é mais comum em época de escândalo da Lava-Jato do que estarmos em conversas sociais, em festas de aniversário, eventos, confraternizações, e dialogarmos sobre a corrupção no país. Com rapidez, surgem afirmações do tipo: que absurdo é a política, quanta roubalheira, o Brasil não tem jeito mesmo, a corrupção é deslavada, me sinto envergonhado, pesam sobre todos os políticos escândalos e denúncias de corrupção.
O diálogo social caminha, com muita frequência, para o nome do juiz Sérgio Moro. Ele é elogiado como sendo exemplo de quem colocará o país nos eixos, como a pessoa e o profissional que mudará a história do Brasil, e então as esperanças de mudança são depositadas na Justiça Federal de Curitiba. Há ainda aqueles que, mais informados, consideram que o fatiamento da Lava-Jato no Supremo Tribunal Federal (STF) é um grande revés no combate à corrupção. As realizações de Moro são, para essas pessoas, inebriantes: ele é o cara, somente ele será capaz de fazer justiça.
Em tais diálogos sociais é praticamente impossível levantar um tema correlato, aquele que relaciona a corrupção no mundo político aos pequenos e diários atos de corrupção de toda a sociedade brasileira. Vale aqui um parêntese. A palavra corrupção é aplicada neste artigo de maneira ampla, não caracteriza atos relacionados somente ao setor público, mas também ações moralmente correlatas praticadas na vida diária e no setor privado. Pois bem, a grande questão que o Brasil precisa discutir é até que ponto seremos capazes de combater a corrupção em Brasília, nos governos estaduais, nas prefeituras, se toda a sociedade comete constantemente delitos ou tão somente quebras de regas que são funcionalmente idênticas a um ato de corrupção.
Quem tem filhos menores de 18 anos sabe que há em São Paulo a possibilidade de obtenção de uma carteira de identidade na qual o menor passa a ter mais de 18 anos. O objetivo é simples: possibilitar que o jovem passe a frequentar shows, espetáculos e baladas que exigem a maioridade como idade mínima. É comum que o menor chegue em casa afirmando que todos os amigos já fazem parte de um grupo que vai requisitar esse novo RG e que, se ele não for parte desse grupo, será discriminado e, mais grave, não poderá ir aos mesmos lugares que seus colegas passarão a frequentar. Ora, se os pais sabem que isso acontece, é bem provável que as autoridades policiais e judiciárias também saibam. Adicionalmente, os pais acabam por aceitar a demanda de seus filhos tornando-os todos, pais e filhos, transgressores e cúmplices. Cabe a pergunta: nossos deputados federais não são, ao fim e ao cabo, bons representantes de nossos atos?
Circula também a informação de que há transgressões da mesma natureza no relacionamento comercial denominado "business to business". Quando uma empresa fornece serviços para outra empresa há, em geral, algum tipo de concorrência. A empresa contratante solicita propostas de diversos fornecedores, uma proposta técnica, com as especificações do serviço, e também e obviamente o preço. Afirma-se que, em muitos casos, a empresa contratada é aquela que paga alguma coisa para os que têm o poder de decisão na empresa contratante. Utiliza-se, inclusive, um nome simpático e inofensivo para isso: chama-se "deu bola", ou "pagou bola". Cabe buscar saber quão disseminado é esse procedimento. Certamente, muitos de nós já ouvimos falar dele. De novo, aqui se aplica a pergunta: nossos deputados federais não são, ao fim e ao cabo, bons representantes de nossos atos?
Recentemente, foi feita uma pesquisa entre 1.100 alunos do ensino médio e superior, pessoas de 16 a 30 anos de idade, de ambos os sexos, e se constatou que 69% já haviam colado em provas, 68% já tinham copiado textos da internet para colocar em trabalhos e 59% já haviam assinado a lista de presença em nome de colegas. Mais da metade já tinha marcado a presença para outra pessoa. Qualquer semelhança com o que ocorre em Brasília não é mera coincidência. É aqui que entram nossos representantes. É lamentável constatar, mas eles nos representam fielmente - inclusive Fernando Collor, por mais que isso nos cause indignação.
É possível que o mesmo estudante que tenha marcado a presença para um colega venha a se tornar político, talvez vereador ou deputado estadual - não precisamos chegar em Brasília. Se ele se tornar um representante do povo, já terá cometido transgressões em sua vida social, pequenos ilícitos ou quase ilícitos. A partir daí, um pequeno passo o impede de fazer o mesmo dentro da administração pública: a chance de fazê-lo e a percepção de que não haverá consequências para sua carreira.
Nós, brasileiros, temos imensa dificuldade para cumprir a lei, cumprir regras. Essa dificuldade tem a ver com a forma como entendemos as relações entre Estado e sociedade e a genealogia das leis. No Brasil, o Estado é visto como um ente inteiramente separado da sociedade. O Estado é uma coisa e a sociedade é outra. São coisas estanques, separadas, que se relacionam, sim, mas que funcionam com suas próprias lógicas. Procure prestar atenção a seus diálogos com filhos e amigos para ver como você se refere ao Estado, e como se refere à sociedade. Nossa visão cultural é diferente, por exemplo, da que têm os americanos, que veem os dois entes como superpostos, entrelaçados e entranhados um no outro. Para eles, não há um Estado lá e uma sociedade aqui, mas há os dois conjuntamente.
O passo seguinte, como vemos o nascimento das leis, tem a ver com isso. Para nós, leis e regras foram feitas por pessoas longe de nós, aqueles "carinhas lá", que fizeram isso para nos prejudicar, para nos f#$%. Foi exatamente esse o argumento dos motoristas quando a velocidade máxima foi reduzida a 50 km/h em várias vias de São Paulo. Virou lugar comum afirmar que "aqueles caras querem prejudicar a nós, os motoristas". Ou: "Eles não sabem quais são nossas reais demandas, não sabem como nossa vida já é difícil, aí, eles, que estão lá longe, no Estado, decidiram por uma regra que prejudica a nós, aqui na sociedade". Muitos imaginaram estratégias para burlar a lei, sendo a mais fácil e óbvia acelerar muito entre os radares e diminuir para 50 quando se aproximassem os controles.
O resultado dessa visão de mundo é que a lei desfruta de pouca legitimidade no Brasil. As pessoas são reticentes em cumpri-la, e quando o fazem ficam de olho na primeira possibilidade de transgredi-la. Há aqueles que, diante disso, argumentam simplesmente que não cumprem a lei porque os outros não o fazem. Nesse cenário, cumpri-la seria um ato de otário. Ora, há uma questão que antecede: provavelmente, a mesma pessoa que utiliza o argumento de que os outros não cumprem a lei não vê legitimidade na lei, não considera legítima a maneira com que se chegou a ela. De novo, não custa repetir, a lei tende a ser vista como algo feito por "aqueles caras lá", no governo, que não sabem das dificuldades que passamos, aqui na sociedade. Eis a justificativa perfeita para não cumprir a lei.
Minha suspeita é que a corrupção é muito disseminada. Não acontece somente em Brasília, é grande nas prefeituras e nos governos estaduais, nas assembleias legislativas, nas câmaras de vereadores, em suma, em todo o setor público. Ocorre em secretarias municipais, em empresas públicas, e muitos órgãos da administração pública. Também suspeito que o procedimento de "dar bola" seja muito disseminado entre empresas clientes e fornecedoras, assim como é avassalador o desrespeito às leis do trânsito, o simples furar o sinal vermelho.
É fácil enxergar o que fazem os políticos em Brasília e defender que eles sejam punidos. Eles estão longe, são "aqueles mesmos carinhas lá" que fazem as leis. Difícil é ver quando nós mesmos não seguimos as regras e leis. Não somos capazes de ver, e quando o fazemos, temos uma boa justificativa, da mesma maneira que as têm os políticos em Brasília. O desafio é identificarmos nossas transgressões e as combatermos.
Diante desse cenário, Sérgio Moro é importante, mas não resolve. Ele é importante porque as investigações que chefia estão tendo impacto sobre o funcionamento do sistema político e também sobre a atividade econômica, mas a solução para a redução da corrupção é bem mais ampla. O mensalão ocorreu em 2005 e o julgamento foi em 2012. Políticos muito poderosos já perderam seus mandatos e alguns nunca voltaram a ser o que eram antes - casos de José Dirceu, o todo-poderoso ministro da Casa Civil, e de Ibsen Pinheiro, que havia sido presidente da Câmara dos Deputados. É possível citar muitos outros. Nada disso impediu que as práticas sociais continuassem em Brasília e em outros níveis do setor público.
Alguns dirão que os políticos não foram presos em número suficiente, que é preciso prender ainda muitos talvez, até que se deem conta de que a corrupção é deletéria para suas vidas pessoais e carreiras. Pode ser. Difícil é saber quantos terão que ser punidos, ou a proporção que terá de ir para atrás das grades antes que haja sinal de redução da corrupção.
Fica aqui a reflexão: pode ser que todo o esforço da Justiça seja inglório se a sociedade não mudar, se todos os brasileiros, e não apenas os políticos, não passarem a respeitar mais as lei e as regras.
*Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário
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