O ESTADÃO - 28/10
A Operação Lava Jato e a aguda crise de governabilidade que afeta o País têm suscitado tentativas de extração de lições nas experiências históricas do Brasil e de outros países. Tentativas nem sempre razoáveis.
Em artigo anterior, insisti em que a atual crise, quando comparada a episódios similares na história republicana - em 1930, 1954, 1964, 1992 -, é sem precedentes. São inéditas "a recrudescência e a disseminação de práticas corruptas (...) cuja magnitude, extensão e duração ainda estão sendo investigadas". Isso em meio à comprovação de articulação estreita entre políticos, empresas privadas e funcionários públicos ou de empresas de economia mista.
Certas análises, em busca de paralelos com 1964, são particularmente imprecisas. Alega-se que a tentativa de implementação de "um programa popular de esquerda" no governo Goulart teria levado ao golpe. Será? Em contexto marcado pela ascensão da esquerda na América Latina, Goulart, em seguida à vitória no plebiscito, tentou implementar, com San Tiago Dantas e Celso Furtado, um programa de estabilização ortodoxo que fracassou em vista de resistência da "esquerda negativa". Depois disso, foi ladeira abaixo na economia e na política. O que a história pode ensinar tem que ver com os riscos implícitos no abandono de políticas prudentes, mas quase nada sobre o formato do desenlace da crise.
Tem havido também melancólicas menções a exemplos internacionais de combate à corrupção. A comparação mais comum é com a Itália e a Operação Mãos Limpas (Mani Pulite), iniciada em 1992. Os descrentes dos efeitos benéficos da Mani Pulite criticam, com base no exemplo italiano, a ideia de que as instituições brasileiras estão reagindo bem aos escândalos e ao combate à corrupção. A tese é de que "escândalo não purifica", pois a implosão dos partidos políticos italianos envolvidos abriu caminho para a consolidação do Forza Italia, de Sílvio Berlusconi, e da separatista Lega Nord. Disso resultaram, entre outras mazelas, um sistema político disfuncional, a estagnação econômica, a explosão da dívida pública, o mau desempenho das universidades italianas, a perda de credibilidade do país.
A tese é um verdadeiro monumento a um conhecido sofisma: post hoc ergo propter hoc (depois disso, portanto causado por isso). No limite, Mani Pulite teria causado Berlusconi e a crise italiana por 20 anos. Que tal tentar, alternativamente, responder à pergunta sobre o que seria da Itália e da política italiana num cenário sem Mani Pulite? Berlusconi provavelmente continuaria à frente de seu império, manipulando os corruptos à Craxi, sem precisar se expor. O sucesso de Berlusconi no vácuo criado pelas consequências de Mani Pulite decorreu das dificuldades enfrentadas pelo sistema político italiano e não deve ser debitado à conta do Judiciário. Similarmente, no Brasil não se espera que a Lava Jato promova a reforma política. O sucesso no combate à corrupção é condição necessária, mas longe de suficiente, para que a reforma política tenha sucesso.
É certo que os setores comprometidos com a corrupção na Itália contra-atacaram desde o início dos anos 90 e, nas palavras de Roberto Scarpinato, procurador-geral em Palermo, trataram de tornar perene a maléfica combinação de minimização das penas para crimes do colarinho branco, prazos curtos de prescrição e morosidade na conclusão de processos. Problemas cuja solução depende de decisões políticas.
O caso italiano, longe de desestimular a Operação Lava Jato, deve servir de incentivo à sua continuação. A relevância da experiência italiana para o Brasil não se restringe à inédita punição de corruptos influentes. Chama a atenção para quão crucial passou a ser a reforma política, tendo em conta que o combate à corrupção terá implicações eleitorais sobre o lulopetismo e os políticos fisiológicos com histórico mais longo.
*MARCELO DE PAIVA ABREU É DOUTOR EM ECONOMIA PELA UNIVERSIDADE DE CAMBRIDGE, É PROFESSOR TITULAR NO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA PUC-RIO
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