Tornou-se lugar-comum dizer que o Brasil não precisa de leis. Precisa apenas cumprir as existentes. Aqui, porém, nem sempre vale o que está escrito. Há sempre um jeito de dar um jeito. Manobras adaptam as normas segundo os caprichos do inquilino que ocupa o poder. Daí a ironia de que este é o único país onde há leis que não pegam.
O jogo do faz de conta conjuga o verbo flexibilizar com naturalidade. As fronteiras entre o permitido e o proibido se atenuam e, não raro, desaparecem. Essa talvez seja a explicação para a reação do governo quando teve certeza de que o Tribunal de Contas da União (TCU) faria o que manda a Constituição - analisar a correta aplicação dos recursos públicos.
Por unanimidade, o TCU recomendou a rejeição das contas de 2014 da presidente Dilma Rousseff. Com fundamentos técnicos, o parecer apontou 12 irregularidades. Entre elas, as pedaladas fiscais. O governo ignorou a Lei de Responsabilidade Fiscal, o mais importante instrumento de moralização da administração pública.
O relatório - fruto do esforço de 14 servidores que compõem o qualificado quadro de especialistas concursados do órgão auxiliar do Poder Legislativo - apontou, entre outros, omissão de dívidas, atraso nos repasses a bancos públicos, pagamentos sem previsão orçamentária, lançamento irregular de despesas. O montante dos truques chegou a R$ 106 bilhões.
Cabe agora ao Congresso acatar ou não a recomendação da corte. Se a acolher, poderá tornar a presidente inelegível e talvez abrir caminho para processo de impeachment. Mas, independentemente do destino que o espera, o parecer tem importância que ultrapassa o curto prazo e a Praça dos Três Poderes. Ele desempenhará papel pedagógico cuja lição repercutirá em estados e municípios.
Governadores e prefeitos, tentados a pedalar, pensarão mais de uma vez antes de apostar na impunidade. A Lei de Responsabilidade Fiscal não aceita o verbo flexibilizar. Os entes federados precisam se curvar aos mandamentos de artigos e parágrafos. Como frisou o ministro Weder de Oliveira, impõe-se vigilância permanente.
No caso, recomenda-se a inversão da ordem dos termos que figuram no mandamento bíblico. Em vez de orai e vigiai, melhor praticar o vigiai e orai. Considerada a gravidade do pecado, a oração é insuficiente para afastar o risco do inferno. A histórica decisão do TCU serve de alerta.
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