O Estado de S. Paulo - 14/06
“Ficará cada vez mais claro quão pouco usual foi a última década”, escreveu a revista The Economist em julho de 2013. E tem razão: a década 2003-2013 foi muito pouco usual, como quer que se defina a expressão. Porque na sua primeira metade foi marcada pelos anos de auge (2003-2008) do que Ken Rogoff chamou de “o mais longo, o mais forte e o mais amplamente disseminado ciclo de expansão da história moderna”. Com a súbita caída do pano no último trimestre de 2008.
E sua segunda metade, de fins de 2008 até pelo menos 2013, foi marcada pelos efeitos da maior crise econômica e financeira desde os anos 1930 e pelas consequências, nada triviais, do tipo de respostas de política econômica por parte dos países desenvolvidos - e da China. Se esses dois quinquênios (2003-13) não foram unusual, é difícil imaginar o que seriam.
No Brasil também está ficando progressivamente mais claro quão pouco usual foi a década de 2003/04 a 2013/14. E quantos de nossos sérios problemas nesta dificílima transição de Dilma 1 para Dilma 2 têm raízes em processos decisórios e crenças seguidas há mais de oito anos, desde a virada de Lula 1 para Lula 2 - e mantidas nos anos que se lhe seguiram.
De meados de 2003 a meados de 2008, o primeiro quinquênio da década “pouco usual”, o Brasil, como é ou deveria ser sabido, beneficiou-se, e muito, de uma combinação de três fatores. Primeiro, uma situação internacional extraordinariamente favorável, que lhe permitiu acumular US$ 190 bilhões de superávits comerciais, ter superávit em conta corrente em cada um dos cinco anos de 2003 a 2007 e acumular quase US$ 200 bilhões de reservas internacionais no período. Segundo, uma condução da política macroeconômica que, enquanto lá estiveram o ministro Palocci e sua equipe (até março de 2006) foi na prática a continuidade da política macroeconômica de FHC 2. Terceiro, por uma herança não maldita de avanços feitos pelo Brasil na vigência de administrações anteriores. Creio que brasileiros razoavelmente informados sabem quão pouco usual foi esse primeiro quinquênio. E como pouco usual - e diferente - foi o período subsequente.
Com efeito, a virada de Lula 1 para Lula 2 foi marcada por uma autodeclarada “inflexão desenvolvimentista” que tinha como objetivo acelerar o crescimento econômico pela liderança do Estado e de suas empresas. O PAC, que Eduardo Gianetti chamou de “programa de abuso da credibilidade”, foi a expressão mercadológica dessa inflexão. Seu anúncio, no início de 2007, contemplava mais de 1.600 “ações de governo” (mais de 900 obras e mais de 700 “estudos e projetos em andamento”). Com o PAC, e o crédito oficial, o Brasil começou a fazer política de estímulo à demanda mais de um ano e meio antes da eclosão da crise global de fins de 2008. Na “revisão” do PAC do início de 2009, o número de ações do governo havia passado para mais de 2.200, das quais cerca de metade seriam obras. O investimento esperado: mais de R$ 1 trilhão.
A capa da Economist de novembro de 2009, com a estátua do Cristo Redentor decolando como um míssil, captava bem o espírito do momento: não só a política “anticíclica” adotada desde 2007, como sua ampliação como resposta à crise de 2008/09, pareciam ter despertado o “espírito animal de investidores internos e externos”. O Brasil parecia ter, finalmente, descoberto como alcançar uma trajetória de crescimento elevado de forma sustentada. A política dita keynesiana parecia ter funcionado, e muito bem, de 2007 a 2009. Por que não dar-lhe continuidade?
Foi o que o Brasil fez, e pelo quarto ano consecutivo em 2010, na suposição de que os estímulos ao consumo, privado e público, levariam certamente a uma grande expansão da oferta doméstica, portanto, do emprego e do salário real. E veio o insustentável superaquecimento da economia - 7,5% no ano em termos reais. A crescente euforia assegurou a eleição de Dilma em 2010.
Bem que houve, em 2011, uma tentativa de lidar com o superaquecimento de 2010 e seus previsíveis efeitos em termos de pressões inflacionárias e déficits crescentes do balanço de pagamentos. Ambos são inevitáveis quando a demanda cresce muito mais rapidamente que a oferta doméstica no horizonte de tempo relevante. Mas o esforço foi abandonado no segundo semestre de 2011 e surgiu a velha “nova matriz macroeconômica”, para tentar o que seria um crescimento acelerado em novas bases.
E vieram o programa integrado do investimento em logística, a criação de mais uma estatal para gerenciá-lo e o anúncio, três anos atrás, de um programa com ambições excessivas: 10 mil km de ferrovias, 5 mil km de rodovias, portos e aeroportos. Com o presidente da nova empresa (EPL) afirmando, na virada de 2012 para 2013, que com R$ 500 bilhões ele “zeraria” o déficit de infraestrutura do Brasil em cinco anos.
E vieram as decisões sobre o setor elétrico (MP 579), a imposição de ônus excessivos à Petrobrás (controle de preços, construção de quatro refinarias, 30% de participação mínima obrigatória em qualquer campo do pré-sal, a criação da Sete Brasil para encomendar a construção de 29 sondas a vários estaleiros, alguns por construir). Como escrevi neste espaço, “tudo parecia possível, porque desejável - se apenas houvesse vontade política”.
Para o Brasil pós-outubro de 2014 talvez esteja começando a ficar um pouco mais claro que as sérias dificuldades atuais exigem mais que alguns poucos “ajustes”, algumas poucas correções de “malfeitos”, algumas poucas recalibragens de alguns erros de “dosagem”. Essas exigências, imperiosas na área fiscal, expressam também problemas mais profundos de oferta, agravados por consequências de decisões tomadas desde o início de 2007.
Estamos, talvez, no começo do fim de um ciclo, ao longo do qual uma determinada visão e uma determinada política ultrapassaram, por larga margem, sua funcionalidade, relevância e utilidade.
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