VALOR ECONÔMICO - 05/06
A história é uma profecia voltada para trás que remete à definição de "experiência" de Pedro Nava: "Um carro que avança, à noite, com os faróis voltados para ré". Nesse percurso acidentado, Lilia Moritz Schwarcz e Heloísa Starling realizaram um "tour de force" de 694 páginas e 137 imagens ao longo de 500 anos de narrativas sobre o país. No fim do caminho, em 2013, conscientes de que as profecias do passado são profecias do futuro, as autoras de "Brasil, Uma Biografia", encerraram o livro com uma certeza: "Toda história é aberta, plural e permite muitas interpretações".
De fato, 500 anos "não cabem só num livro". O trabalho do historiador nunca é fácil, pois "é preciso calçar os sapatos do morto para penetrar num tempo que não é o nosso", segundo Evaldo Cabral de Melo, para sentir com os sentimentos alheios e tentar compreender a trajetória dos protagonistas "no tempo em que lhes foi dado viver, com as intervenções que realizaram a cada época com os recursos de que dispunham, vivendo de acordo com as exigências do seu tempo, e não de acordo com as exigências do nosso tempo". Além disso, no fim há sempre batalhas pelo sentido das profecias.
No caso, à primeira vista o conceito de biografia parece incômodo para lidar com uma narrativa inconclusa. As biografias costumam ser descrições de histórias finitas, mas as autoras preferiram, "em vez de fazer uma história do Brasil, fazer do Brasil uma história", como explica Heloísa. A ideia vai se tornando mais clara à medida que se avança por ela e se percebem, além do desfile cronológico dos eventos conhecidos, avanços e recuos, escolhas e circunstâncias, conquistas e ilusões, vozes não oficiais, anedotas, provérbios, interpretações artísticas, cenas plausíveis, porém imaginadas, e comentários das canções da música popular, tudo convergindo para uma costura do público com o privado cujo bordado progride, um tanto à deriva, sem saber bem para onde vai, como obra aberta.
"Tentamos evitar uma história evolutiva com uma perspectiva de destino embutida. Numa biografia você pode contemplar conquistas, contradições, retrocessos, vacilações e ambivalências que persistem, tais como o bovarismo, o racismo, o patrimonialismo e a corrupção", diz Lilia. Sem dúvida, a parceria entre uma antropóloga e uma cientista política deu vulto às manias nacionais. O bovarismo, por exemplo, esse "invencível desencanto em face das nossas condições sociais", pinçado por Sérgio Buarque de Holanda no "Madame Bovary", induz não poucos brasileiros a recusarem o país real e a se imaginarem diferentes do que são, viciados no "estrangeirismo" de tudo copiar e de se verem no espelho com a identidade convertida em "algo parecido com um colchão inflável", que incha e desincha, ora mais portugueses, ora franceses, ora americanos, ora atrasados, ora até adiantados.
Entre a pretensão de que "Deus é brasileiro" e a goleada de 7x1 da seleção da Alemanha, os instáveis biografados não cessam de expressar a "esperança milagrosa" de que "algo aconteça" - um golpe de sorte, um improviso ou um atalho -, que resolva a partida e elimine os problemas árduos que exigem trabalho e perseverança. Daí que a profecia do livro, a sua "grande utopia", "talvez seja acolhermos os valores que têm como direção a construção do que é público e comum". Assumir os direitos e os deveres da cidadania democrática moderna é um desafio e tanto num país em que predominam "os afetos e o imediatismo emocional sobre a impessoalidade dos princípios que organizam a vida dos cidadãos nas mais diversas nações".
Para alterar seu "imperfeito republicanismo" o Brasil precisa superar sua "persistente fragilidade institucional, a corrupção renitente e o bem público pensado como coisa privada", construindo virtudes públicas sólidas. Assim, este livro de história recém-publicado reitera o primeiro do país, a "História do Brazil", de frei Vicente Salvador, que em 1630 já lamentava que "nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela, ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular". E ambos evidenciam a atualidade duradoura do provérbio: "Quem rouba pouco é ladrão e quem rouba muito é barão".
Enganam-se, entretanto, os que acham que o jeitinho e a malandragem são "respostas estáticas" do suposto "caráter brasileiro", que naturalizam a corrupção que ocorre em todos os países e congelam o seu combate. "Nossa história é dinâmica e paradoxal, escravagista e insurgente, cruel e generosa, e se reinventa sempre, apesar das frustrações", diz Heloísa. "Não somos uma coisa ou outra. Somos as duas ao mesmo tempo." Não fosse assim, a nação não teria entrado em catarse diante da TV, durante os quatro meses de debates do julgamento do mensalão pelo Supremo Tribunal Federal, em 2012. Tampouco teria "explodido" nas ruas com os protestos de junho de 2013. É claro que a corrupção "não é um fenômeno marginal na vida pública brasileira", mas a reação contra ela está crescendo. "O Brasil está mudando os comportamentos públicos e privados em relação à corrupção", afirmam as historiadoras.
Em todos casos a história é uma narrativa que seleciona eventos relevantes entre irrelevantes, segundo interpretações e interesses. Portanto, sempre faltará ou sobrará algo, mesmo num livro de mil páginas. Além disso, é preciso desmontar os mitos, investigando, além do que é falso ou verdadeiro, as encenações de época que consolidam as representações. Uma das mais controvertidas é a ideia da escravidão mais amigável do luso-tropicalismo. O Brasil recebeu 5 dos 8 a 11 milhões de negros arrancados da África, numa escalada demográfica que o projeta, hoje, como o segundo mais populoso país africano depois da Nigéria, contando os pardos e os negros. "O escravismo se enraizou de tal forma que marcou nossos costumes e palavras", diz Lilia. "Se a casa-grande delimitava a fronteira entre a área social e a de serviços, a arquitetura simbólica permanece nas casas e edifícios, onde elevador de serviço não é só para carga, mas sobretudo para os empregados que guardam a marca do passado africano na cor".
Ainda assim, o mito perdura. "A escravidão pacífica serve para minorar o impacto da desigualdade instituída, mas não consegue silenciar a remoção forçada dos africanos, as rebeliões, os castigos, as punições e a resistência dos quilombos", diz a antropóloga. Sim, Gilberto Freyre executou uma "façanha analítica" ao conferir caráter positivo à mestiçagem, atribuindo a ela não o atraso do país, mas sua vantagem comparativa no futuro. Mas todas as representações carregam dissonâncias de sentido.
Algumas passam despercebidas, como o discurso nativista sobre o "exército mestiço" de brancos, indígenas e negros que expulsou os holandeses de Pernambuco em 1648. A idealização republicana da Inconfidência Mineira relevou os interesses da "plutocracia" de contratantes e mercadores de ouro brasileiros demitidos dos cargos pelos portugueses. A república nascente atribuiu ao inconformado alferes Tiradentes, cujo rosto é desconhecido na história, "uma face religiosa, cabelos Chanel, olhar profético e túnica branca como a de Jesus Cristo". Outro mito é o quadro "Independência ou Morte", de Pedro Américo, que converteu as perturbações gástricas de d. Pedro I, durante a subida "à mula" de Santos para São Paulo, num épico brado do Ipiranga.
Mais do que um "reflexo" da marcha dos acontecimentos, a cultura produz cenários tão reais quanto distorcidos. Num país que vaia até minuto de silêncio, até o deboche costuma converter em balela o que não é. O impacto da vinda de João VI e 10 mil membros da corte portuguesa para um Rio de 60 mil habitantes, por exemplo, passou ao largo do filme "Carlota Joaquina, Princesa do Brasil", de Carla Camurati. "D. João VI é um personagem contraditório e até cômico, pela insistência em não declarar guerra à França com os franceses já invadindo Portugal. Mas também foi um estrategista que acertou ao transferir a corte", diz Lilia. "A Revolução Francesa acabou com muitas monarquias, mas a portuguesa ficou. Carlota Joaquina era uma estrategista. Ninguém estava brincando."
Graças a Napoleão, uma sociedade colonial sem moinhos, manufaturas, tipografias e universidades ganhou um Estado pronto, com reis, nobres, generais, monsenhores, mordomos, bibliotecários e contadores. O Reino Unido gerou a independência que desviou o Brasil do destino fragmentário dos 14 países que sucederam os quatro vice-reinados espanhóis, mas a monarquia planejada pela elite do Sudeste, com um grande território e economias complementares, não era a única possibilidade. "As elites pernambucanas e baianas sofreram. O país livrou-se da ruptura e do inesperado, mas consolidou a escravidão, o latifúndio e o patrimonialismo. Na época, a maior ameaça era uma revolução como no Haiti", diz Lilia.
D. Pedro II dedicou-se com seriedade austríaca à construção da monarquia tropical possível, tomando os signos grandiosos da natureza brasileira - o território, o clima ameno, os recursos naturais e os índios -, como matrizes da nacionalidade. Consolidou-se, assim, "uma memória oficial que se orgulha de alimentar o mito da beleza estonteante da natureza tropical, quando a história é outra". Na verdade, apesar da mitologia sobre a Amazônia, do ufanismo militar nacionalista ou dos exuberantes desfiles da natureza no sambódromo todo ano, passando pelas visões críticas ao romantismo decorativo do "índio de tocheiro" (Oswald de Andrade) e do tropicalismo, o Brasil é o campeão mundial do desmatamento e alvo secular de denúncias de maus tratos aos índios. Os brasileiros estetizam a natureza para compensar o desencanto com a cultura, mas tampouco acreditam na própria idealização.
Talvez a ilusão mais recorrente seja a "índole pacífica do povo brasileiro", que trata a Guerra do Paraguai como a exceção que confirma o mito de país com relações harmoniosas e tolerantes, externas e internas, como se a violência vigente na periferia das cidades fosse episódica. Esquece-se que a Cabanagem eliminou 30% da população do Pará, que a Revolução Federalista do Rio Grande do Sul, de 1893, matou 10 mil pessoas e exportou a degola para a Guerra de Canudos, e que em 1932 São Paulo e Campinas foram bombardeadas. Há até quem lamente a "falta" de violência, invejando a passionalidade dos vizinhos argentinos e zombando da Batalha de Itararé, na Revolução de 1930, "a maior batalha latino-americana que não houve". Há quem torça para o circo pegar fogo. Todo signo histórico é como Jano, a divindade de duas faces: qualquer crítica pode virar elogio e qualquer verdade, a maior das mentiras. Mas são os homens, não as interpretações, que fazem a história. Em 1947, Luís Carlos Prestes declarou ao Congresso que, no caso de uma guerra com a URSS, os comunistas tomariam o lado daquele país. Deu pretexto para a cassação do Partido Comunista e fomentou o anticomunismo nas Forças Armadas. Em 31 de março de 1964, o general Olympio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar, de Juiz de Fora, lançou a tropa contra o Rio de Janeiro para depor o presidente Goulart. Esse mesmo oficial escrevera, em 1937, o forjado Plano Cohen, com supostas instruções para um violento levante comunista, na dupla condição de chefe do serviço secreto da Ação Integralista Brasileira e coronel do Estado-Maior do Exército, fornecendo pretexto para decretação do Estado Novo. Atribuir sentido à história é guerrear com palavras.
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