Volta-se a falar em pacto federativo, compreendendo, como sempre, descentralização e maior autonomia para Estados e municípios. A ideia faz sentido em tese, mas será problemática se desprezar as condicionantes que explicam a atual distribuição de receitas e encargos na Federação. Não é o que parecem pensar os governadores, que tornam a reivindicar aumento de transferências de recursos da União para os Estados.
A defesa da ideia se nutre de um mito, o de que a maior participação da União na receita tributária adviria de ação deliberada para aumentar o poder em Brasília. Teria havido dois momentos do processo: um durante o governo militar; outro iniciado em 1988, centrado no recurso crescente às contribuições sociais. A concentração ocorreu, mas por motivos distintos e justificáveis.
O estudo em que se baseou a reforma tributária no governo Castelo Branco (1965) não contém referência a centralização de recursos na União. O objetivo era imprimir racionalidade ao sistema. Conceitos jurídico-formais da época da colônia foram substituídos por regras baseadas nos aspectos econômicos dos tributos. Os Estados e municípios beneficiaram-se da criação dos fundos de participação, cujo objetivo era assegurar receita mínima para todos.
O uso de contribuições foi a melhor forma de lidar com os efeitos fiscais da Constituição de 1988 e a elevação dos fundos de participação, que passaram de 20% da arrecadação do Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) em 1980 para 47% em 1988. Adicionalmente, 10% do IPI foram alocados aos Estados por supostas perdas com incentivos às exportações. A União perdeu ainda os impostos únicos sobre combustíveis, energia elétrica, minerais e transportes, que foram incorporados ao ICMS, que é estadual.
Além da perda expressiva de receitas, a União teve suas despesas elevadas pela criação de novos gastos previdenciários e com a folha de pessoal. Os dispêndios obrigatórios com educação subiram de 13% para 18% dos impostos federais. Dada essa terrível realidade, restava ao governo federal, em fins de 1988, a opção de aumentar a carga tributária.
Para tanto deveria ter recorrido ao Imposto de Renda e ao IPI, menos distorcivos do que os demais. Acontece que seria preciso cobrar pelo menos o dobro do IR e o triplo do IPI para obter a mesma receita, pois mais da metade do primeiro e mais de dois terços do segundo se destinam automaticamente à educação e aos fundos de participação. Instituiu-se, por isso, a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), uma espécie de IR integralmente pertencente à União, não sujeita à partilha com Estados e municípios. Vieram outras contribuições e foram elevadas as alíquotas das existentes.
Quem defende um novo pacto federativo, incluindo os governadores, deveria antes estudar a estrutura da despesa federal. Os gastos previdenciários – 7,1% do produto interno bruto (PIB) em 2014 – consomem 28,4% da receita tributária da União. Os gastos com educação e saúde somam outros 12,4%. A folha dos servidores, quase todos estáveis, absorve 16%. Os encargos financeiros da dívida federal, 20%. Finalmente, 15,2% vão para os fundos de participação. No total, 92% da receita da União estão comprometidos com gastos obrigatórios. Restam 8% para financiar programas sociais, investimentos, Forças Armadas e manutenção da máquina federal. Essas despesas superam aqueles 8% e tornam deficitário o Orçamento da União. Não tem de onde tirar para dar aos Estados e municípios.
A República inspirou-se no modelo federativo americano, de forte autonomia estadual, mas foi guiada por tradições ibéricas de Estados unitários. Diante das dimensões do Brasil justificava-se o federalismo, mas era preciso contar com mudanças culturais. Permaneceu, todavia, a ideia de que o governo federal tem papel central. No século 20 consolidou-se a visão de que o gasto público exerce função redentora. Vem daí o desastre fiscal da Constituição de 1988 e de decisões posteriores que ampliaram a despesa pública. Veja-se a recente e irresponsável fragilização do fator previdenciário na Câmara dos Deputados. Se aprovada no Senado e não vetada, agravará a situação da Previdência Social e ampliará os gastos obrigatórios para 94,4% da receita.
A rigor, é possível negociar uma nova estrutura de gastos e receitas, com distribuição adequada entre os entes federados. Distribuir somente receitas, como querem os governadores, esbarra em impossibilidade física, a menos que se aumente substancialmente a carga tributária. Redefinir gastos por ente federado esbarra na sua rigidez. Poder-se-ia transferir receitas do INSS e outras para os Estados, atribuindo-lhes a responsabilidade de arcar com as aposentadorias em seu território e de assumir parcelas da dívida pública federal, mas isso é utopia.
Discussões sobre o pacto ganham dimensão em época de crise nos Estados, como agora. Desta vez, há uma novidade, isto é, o efeito, nas finanças dos governos subnacionais, da desastrada política de desonerações do IPI, conduzida pelo Ministério da Fazenda no primeiro mandato da presidente Dilma Rousseff. Pela Constituição, o IPI pertence às três esferas de governo, mas é administrado pela União. A rigor, a União deveria compensar os Estados e municípios pela perda deles na concessão de benefícios fiscais. O inédito, desta vez, foi o abuso. Já é hora de criar regra nesse sentido para casos futuros.
Independentemente disso, não faz sentido reivindicar novas transferências da União, pois o Tesouro Nacional é uma vaca leiteira capaz de continuar a repartir indefinidamente suas receitas. No passado, transferências adicionais resultaram quase sempre em maiores gastos de custeio e aumento do quadro de servidores.
Sem um estudo sério e responsável o risco é caminhar-se a esmo para um novo e desastroso federalismo fiscal. A situação do Brasil pioraria.
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