O GLOBO - 18/12
A estratégia de reagir a uma crise com a proposta de convocação de uma Assembleia Constituinte para a reforma política ou de um plebiscito, e até mesmo a frase "não deixar pedra sobre pedra" na apuração de um escândalo, muito usada pela presidente Dilma na campanha deste ano, fazem parte de um roteiro previamente organizado a partir do escândalo do mensalão por Bernardo Kucinski, escritor premiado e jornalista tarimbado, que teve papel central no primeiro governo Lula criando uma correspondência diária com o presidente por meio da análise do noticiário dos jornais que enviava logo pela manhã, por volta das 8h.
Lula, que confessou que não lia jornais para não ficar com azia, lia aquelas cartas, que ele chamava de "ácidas", e também criticava. Certa vez, na campanha de 1989, Lula disse que Kucinski era tão ácido que, se passasse uma toalha no seu suor e depois espremesse, dava para tirar vinagre.
Mas a confiança no autor, apesar de alguns mal-entendidos, transformou as cartas em instrumento importante de ação presidencial, mesmo que, com a eleição de Lula em 2003, elas tenham passado a se chamar Cartas Críticas, com cuidados para, na definição do autor, "alertar o presidente, sim, aborrecer o presidente, não". Mas sem abdicar de sua função crítica.
Pois quando estourou a crise do mensalão, em 2005, foi de Kucinski que partiram as sugestões de levar ao debate público questões como a reforma política. Escreveu ele em 9 de junho de 2005: "Há uma convicção crescente entre juristas e analistas políticos de que a raiz do problema da corrupção política está no sistema político. Nesse sentido, outra iniciativa ousada do governo seria a de propor uma reforma política já. Talvez isso ajude a levar o problema para um plano superior e genérico".
Em outra ocasião, diante do fato de que a crise do mensalão crescia, ele sugere a Lula: "Só resta ao presidente aprofundar a linha de conduta de 'não deixar pedra sobre pedra' no combate à corrupção e, se preciso, 'cortar na própria carne' ".
De outra feita, ele diz que "em caso extremo, o governo poderia encampar a proposta de convocação de uma Assembleia Constituinte (...), a razão seria a perda de legitimidade do atual Congresso por causa do mensalão".
Essas cartas estão agora selecionadas em um livro, "Cartas a Lula", em que, divididas por temas, aparecem abordando os principais episódios do primeiro governo, desde o Fome Zero e o Bolsa Família até a transposição do Rio São Francisco, que Kucinski considera um projeto mal aproveitado pelo governo, que não organizou sua narrativa para que tivesse condições de mostrar sua importância para a região.
As cartas fizeram análises de macroeconomia e do cenário internacional, que eram muito utilizadas por Lula em suas viagens. E analisavam detidamente as reações dos principais jornais e revistas em relação a decisões do governo, buscando explicações para comentários de alguns jornalistas ou editoriais. Não há em nenhum momento, nas cartas selecionadas no livro, juízos de valor sobre este ou aquele comentário deste ou daquele jornalista, como se Kucinski estivesse preocupado também em não alimentar o antagonismo entre a chamada mídia e o governo.
Em muitos casos, como no da expulsão do correspondente do "New York Times" no Brasil, Larry Rohter, que fez uma grande reportagem acusando Lula de ser um alcoólatra, Kucinski procura as razões da reportagem muito menos no seu autor do que na política do próprio jornal, que considera representante do establishment americano. É disso que se trata, escreveu Kucinski; Lula tornou-se alvo do Império, e isso deveria deixá-lo orgulhoso. Kucinski se utiliza até mesmo do filósofo americano Noam Chomsky para basear sua opinião de que a reportagem do "New York Times" representava o reconhecimento do governo dos Estados Unidos de que Lula era um líder que precisava ser combatido.
Pelas reações do próprio Lula na ocasião e da presidente Dilma durante a crise de 2013, quando as manifestações populares surpreenderam o governo, e até mesmo na recente campanha presidencial, os conselhos de Kucinski continuam sendo seguidos no Palácio do Planalto, eventualmente adaptados às novas circunstâncias pelo marqueteiro João Santana, também ele originalmente jornalista.
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