REVISTA VEJA
Há desses momentos na nossa vida pessoal, dessas fases na vida pública, em que parece que nada entendemos. Talvez seja porque estamos em dias difíceis, ou simplesmente nada funciona mesmo, e não entender é apenas natural. Passará, quando as engrenagens da vida ou do país forem consertadas, lubrificadas, postas em funcionamento sob uma direção competente e séria de condutores que se dão as mãos numa intenção comum: que as coisas melhorem, profundamente, cada dia mais.
Fora isso, é estar como agora estamos, tantos de nós. Natal, novo ano, época de reajustes pessoais e familiares, de encontros, de confraternização sem hipocrisia, ou de resolução: sim, a gente vai tentar melhorar; sim, a gente vai se separar porque como está não dá mais; sim, vou escutar mais meu filho; sim, vou ser mais gentil e amoroso com meus pais; vou sair da armadilha da droga, vou me tratar; vou levar a vida a sério; ou vou sair de casa, vou cair na vida, vou experimentar de tudo e ver no que dá. Às vezes é: sim, vou cuidar mais de mim mesmo e largar o que me prejudica; vou ser forte, e firme; vou ser um homem de verdade; ou, sim, vou deixar de ser boba, largar a culpa sem sentido e me valorizar.
Com relação ao país, é parecido: vou tentar consertar a bobagem que eu fiz; vou ser mais alerta e cobrar muito mais; vou delatar as mentiras, as armadilhas; vou reconhecer os males, as chantagens, os métodos de compra e venda; vou encarar a realidade de que o país, ou a política, virou um mercado persa; vou prestar atenção. Quanto você vale? Quanto vale seu partido? Quanto vale seu cargo? Quanto vale seu posto num escalão mais alto? Quanto vale sua deslealdade? E a gente calcula, ou nem calcula e mergulha na lama um pouco mais. Como afunda um pouco mais na desgraceira da vida pessoal, e vamos em frente.
Estamos todos boquiabertos com muita coisa que acontece: delações, provas, prisões, investigações e declarações de culpa ou de inocência. Ah, a inocência com seus redondos olhos infantis e dedo em riste, enquanto a mente arquiteta mais e mais mentiras, é preciso sobreviver até para desfrutar as fortunas mal ganhas. As coisas realmente vão mudar? Há quem não tenha preço e não se venda? Há quem resista a muita perseguição ou ameaça? E, se tantos altos postos no país estão ocupados por razões políticas ou pecuniárias, com garantias de mais e mais recompensas, haverá gente suficiente para limpar o recinto e começar a transformar o país? Vai levar tempo para mudar, dizem os mais sérios. Quanto tempo? O tempo de ainda vermos tudo mudado no tempo da nossa vida? Depende dos anos que nos estão reservados, e isso só os deuses sabem. A nós, comuns mortais, resta torcer, esperar, agir decentemente na vida pessoal, no trabalho, na turma, na família, conosco mesmos. Olhar a cara limpa no espelho a cada manhã e sentir-se bem: não tenho preço.
E tomar em paz o café da manhã, pegar o ônibus de sardinhas em lata, subir no trem atrasado ou que vai quebrar logo adiante, não ter água, e não ter luz, os preços subindo, o trabalho rareando, mas mesmo assim ter esperança: com gente séria e competente, as coisas devagarinho vão melhorar, sobretudo a confiança, essa senhora esquiva que tem andado tão fugidia, e que mesmo agora, ou especialmente agora, espia aqui, espia ali, faz uns acenos amigáveis, mas não se oferece aberta e inteira para sermos mais felizes e mais tranquilos. Ainda não. Mas em breve, se os deuses permitirem, se os homens conseguirem, se a lei e a decência prevalecerem, se as feridas forem reveladas e tratadas e começarem a curar, se mais homens de bem ocuparem os postos mais importantes, se pudermos de novo olhar para a frente sem nos envergonharmos, aí possivelmente teremos um país convalescendo da longa e lenta enfermidade dos desinformados, dos iludidos, dos aviltados.
Senhora confiança, dádiva de que tanto necessitamos, venha neste Natal e permaneça por todo o ano que chega ainda tenso, estranho, para nós, que estamos perplexos.
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