O GLOBO - 17/09
O insignificante ganha importância na campanha
Temos significado (a ideia de uma coisa), significante (como essa ideia é proclamada em sons ou sinais) e insignificante. As duas primeiras palavras formam um par de opostos complementares e interdependentes decisivo para o entendimento da vida coletiva. Ele foi trazido à consciência dos estudiosos das línguas por Ferdinand Saussure, um dos inventores da linguística moderna e do estruturalismo. Já o terceiro termo — o insignificante — surge com a leitura do novo livro-parábola de Milan Kundera, “A festa da insignificância”.
Nele, Kundera faz Ramon, um dos seus personagens-marionetes, declarar: “A insignificância, meu amigo, é a essência da existência.” Uma afirmação espantosa porque, sendo essência, o insignificante passa a ser esplendorosamente significativo. É como mentir e insultar em disputas eleitorais porque vencer é tudo. O insulto e a mentira passam a ser a roupagem moral de quem os usa sem reserva.
Foi exatamente isso que ouvi de um cabo eleitoral. Estávamos encarapitados num palanque desequilibrado que ia para a direita ou para a esquerda, para frente e para trás, como se fosse um barômetro a seguir as denúncias e as propostas dos candidatos. Descobri que os palanques agasalhavam muito mais do que pensavam minha vã e pobre antropologia e as profecias dos que disputam cargos eleitorais.
Para quem vê no aparelho do Estado a solução para todos os problemas, nada pode ter autonomia, a não ser o Estado e, controlando-o, os políticos de plantão ou os donos do poder. Mas, mesmo assim, e por isso mesmo, sabemos que o Estado tem seu lado humano pois, não sendo uma máquina, embora alguns falem de uma “máquina estatal”, ele não funcionaria sem pessoas que, ao fim e ao cabo, não são estrangeiros ou marcianos, mas nossos irmãos, filhos, tios, pais, amigos e compadres. No Brasil, demora coisa de cinco minutos para se saber quem é quem em alguma parada, cargo ou projeto de modo que o nome descobre imediatamente uma rede de relações, sinaliza o nosso lugar e o mundo entra nos eixos. “Sei...”, murmura uma voz dentro de cada um de nós.
Se o cargo estatal está estruturalmente ligado a um ator que, como todo mundo, tem uma família, amigos e partido, então a autonomia ou independência atribuída ao Estado é muito relativa. E fica ainda mais discutível quando o estilo de viver coletivamente é enfaticamente fundado em simpatias e lealdades pessoais porque, no Brasil, os laços institucionais não agem com força fora das torcidas de futebol.
Se isso é aceito como um argumento sociológico realista e relativamente importante, as autonomias têm que ser discutidas. Elas dependem da instituição e do contexto; das competências e também do prestígio político. E do projeto de poder. Se ele for incomensurável como é claro no lulopetismo, então não há o que discutir, exceto o tipo de “capitalismo de Estado” que se deseja implementar no Brasil. Porque não há nenhuma sociedade, nem mesmo as que estariam contra o Estado, como no conhecido ensaio de Pierre Clastres, que não tenha uma agenda capaz de governar suas rotinas, mas esse sistema pode não estar organizado como um Estado. Ele não se encerra num organograma de posições devidamente legalizadas e escritas em mármore ou bronze, como dizia Rousseau.
Aliás, um dos maiores problemas sociológicos do nosso tempo é entender os elos entre costumes, regimes políticos e leis. Montesquieu e Tocqueville perseguiram essa questão com afinco e ela retorna todas as vezes que o dogma estatizante surge enfaticamente como no lulopetismo e nas reações do governo com analistas que criticam o governo Dilma por ter instalado viés de notório anticrescimento no Brasil que governa.
Meu velho mestre falava isso anteontem no mesmo palanque frágil onde vaidades, egos e projetos eram sacudidos por medos, acusações, ódios e esperanças. A cada movimento do palanque eu dizia a mim mesmo: espero que aguente. Depois de tomar umas e outras, o professor soltou o refrão do “salvar o Brasil dos canalhas que, como piolhos, infestam a nossa vasta cabeleira histórica!” Adorei a expressão...
O que define o radicalismo é a recusa a calibrar meios e fins porque nele só existem os fins, os fundamentos. Qualquer sistema não referido a crenças político-religiosas é rejeitado. Um sistema relativamente autorreferido tem uma relativa autonomia. Por isso, o mercado, a moeda estável, um sistema legal com razoável previsibilidade, perturbam tanto os autoritários quanto os formalistas (que só falam dos meios ou dos métodos). Ambos recusam discutir eficiência ou resultados (que levam a mudança) porque essas dimensões calibram meios e fins. Se os fatos nos desmentem, mudem-se os fatos. E que se escreva e discuta apenas o permitido.
Não há — continuava o mestre — como ter um mundo em pleno equilíbrio quando se é finito e não pode viver os momentos finais da finitude plenamente. Somos uma poeira de uma subpoeira. Morremos sempre sem saber e eventualmente de modo trivial. Como um fruto que cai sem aviso de uma árvore.
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