O ESTADO DE S.PAULO - 07/07
A insatisfação e a inquietação crescem e se generalizam. Dados publicados na mídia: no primeiro trimestre de 2014 o produto interno bruto (PIB) cresceu pífio 0,2%, o investimento correspondeu a 17% do PIB (na China, 40%...) e a indústria recuou 0,8%. Contas externas em crise. A inflação resiste alta e há risco de estagflação. Vivemos a ameaça de colapso do sistema de energia elétrica. Conflitos no campo e nas cidades são rotina. O atendimento à saúde e a educação vão mal. E espalham-se no País a criminalidade e a desordem, as greves nos serviços públicos que usam o povo como refém, o desrespeito a decisões judiciais e os protestos com vandalismo irracional, por motivos de razoáveis a absurdos.
Quais as razões? Citam-se velhas e novas, internas e externas, que existem e contribuem. Mas a razão básica situa-se no Estado, conduzido por poder político hoje moldado sob a influência de injunções da demografia na democracia.
De fato: com população moderada a pequena, sem clivagens sociais drásticas - a Noruega, por exemplo -, é fácil estruturar a democracia. Dotado de razoável instrução, consciência cívica e segurança socioeconômica, o povo escolhe bem o poder político. Já nas grandes massas socialmente heterogêneas e amorfas, com setores que, carentes dessas condições, são susceptíveis à ilusão do messianismo salvacionista, é difícil fazê-la correta e eficaz - problema presente no Brasil nos últimos oito decênios de forte crescimento demográfico e urbanização, de substituição da política oligárquica rural pela popular urbana. A liberdade política, violentada na República Velha pelo patriarcalismo, hoje o é pela vulnerabilidade do povo à influência de imagens redentoras, emblemática na pergunta ao autor deste artigo em fila de votação em 2010: "Qual é mesmo o número da mulher que o Lula mandou votar nela?".
Nossa democracia de massa difusa facilita a existência de mais de 30 partidos, camaleônicos, sem consistência doutrinária e programática - no que são coerentes com o povo -, pautados pela participação no poder, pela visão eleitoral oportunista em detrimento do profundo e do maior prazo. É campo fértil para o populismo com seu messianismo carismático e sua esperança na ilusão, para a política-espetáculo (a exemplo da associação da cidadania com o consumismo), para medidas ditas sociais (algumas realmente necessárias, discutível é o modus faciendi) que mobilizam votos, mas não consolidam a cidadania consciente, para a demagógica e falsa luta de classes e o terceiro-mundismo anacrônico.
Nesse quadro de inconsistência social e política é inviável o modelo de governo natural na democracia: o governo de coalizão apoiada na convergência de programas e ideários. Mais coerente com ele (e ocorrendo no Brasil) é o governo de cooptação de partidos vazios de ideias, agigantado para resolver a equação da cooptação, com o correlato "aparelhamento" do Estado à revelia da competência. Além, é claro, de propenso à corrupção. Consequência: a continuidade (ou agravamento) do sintetizado no início do artigo e, a reboque, o descrédito da política e dos políticos.
Como resolver esse imbróglio? É fundamental a redução das injunções negativas inerentes à grande massa. Em destaque a melhora da educação, mas também de outros serviços públicos - saúde, habitação, transporte... -, necessária ao resgate da autoconsciência cívica, habilitando-a ao exercício dos direitos políticos (em particular, o voto) sem o contágio da hipnose política que dissolve a razão na confusão mental da multidão fascinada pela retórica messiânica.
Essa redução exige tempo, não se muda um perfil socioeconômico com deficiências gritantes por passe de mágica. Mas o tempo por si só não resolve: na esfera política há que usá-lo (e abreviá-lo) com competência e altruísmo para superar a obsessão pela posse do poder e permitir que se faça o que deve ser feito, mesmo que sem retorno eleitoral no curto prazo.
Se isso não acontecer, tende a crescer a ideia de que a democracia de massa sem razoável configuração socioeconômica tem limites (a "democracia relativa" do presidente Geisel...?). Descartados o autoritarismo radical e a democracia seletiva, incompatível com o ânimo popular hoje vigente - as democracias da França e Alemanha do século 19 promoveram a universalização do ensino antes do voto universal -, o quadro é permissivo à ocorrência de combinações ambíguas de que já vivemos sintomas, sutis ou nem tanto, "tropicalizadas" na receita bolivariana, de práticas semiautoritárias com viés (real ou ilusório) socialista e manifestações de democracia (eleição a principal). Combinações propaladas como adequadas ao País, na retórica pragmática que procura dispensar o raciocínio e é ajustada ao público ocasional, pelos Goebbels repetitivos ou Antônios Conselheiros seculares urbanos de promessas paradisíacas, da era da TV. Combinações a que podem ser úteis (dois exemplos) o aventado "controle social (?) da mídia" e os conselhos/comissões da Política de Participação Social, em tese democráticos, mas que, em sociedades simpáticas ao messianismo redentorista, podem funcionar como sovietes tutelados.
O quadro sugere a pergunta: como se explica a democracia de massa bem-sucedida nos EUA? Simples: lá as primeiras colônias adotaram a organização democrática coerente com a pequena propriedade e institucionalizaram o ensino básico universal, inicialmente estruturado nas igrejas. Sua democracia de massa atual decorre dessa base sadia. Aqui ocorreu o patriarcalismo da grande propriedade e a ausência da educação, que não interessava ao modelo, à sombra do absolutismo português. Com o ocaso do patriarcalismo rural a hegemonia passou à esfera urbana e nela, à política mais condicionada pelo poder do que por ideias. Entre elas, forte, o redentorismo populista comum na democracia de massa.
Corrigir é viável, mas não será fácil.
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