O GLOBO - 08/06
É uma violação dos direitos humanos do torcedor marcar passeatas perto dos jogos da Copa
Há heróis anônimos, ignorados ou esquecidos, em toda parte. Não seria diferente em relação à Copa. Pelo país afora, tenho certeza de que muitos compatriotas estão tomando providências essenciais para ajudar a equipe brasileira a chegar ao hexa, que nunca serão reconhecidas e muito menos celebradas. Eu mesmo, modestamente, já contei aqui da oportunidade em que, na companhia de meu pai, colaborei com o sucesso do Brasil, na Copa de 58. Meu pai, que botava uma garrafa de uísque Cavalo Branco ao pé de nossa radiola Standard Electric de última geração, se perfilava na hora do Hino Nacional e usava o mesmo pijama que usou na vitória sobre a Áustria no primeiro jogo, ficou apreensivo porque, logo em seguida, não passamos de zero a zero com a Inglaterra. Mas, pouco depois, com os olhos acesos, me comunicou a descoberta sem a qual talvez aquela Copa não tivesse sido nossa.
— Você estava no banheiro, dando descarga, bem na hora em que Nílton Santos fez o gol, eu me lembro perfeitamente. Precisamente no instante em que a descarga disparou, ele fez o gol. Acho que não preciso dizer mais nada ao senhor.
De fato não precisou e ainda bem que, naquela época, não se falava em falta de água no planeta, do contrário eu carregaria culpa o resto da vida, porque o jogo que veio depois, contra o País de Gales, ficou num um a zero mirradinho, mas eu calculo por baixo que dei umas quarenta descargas. Era duro sincronizar a descarga com uma jogada de nosso ataque, só fui pegar um pouquinho de know-how quase no fim do jogo. Não sei qual seria meu destino, se Pelé não tivesse feito o nosso golzinho, porque meu pai não costumava ser muito compreensivo numa situação dessas. E houve diversas outras ocasiões semelhantes, tenho certeza, em que nossa contribuição foi muito importante, ou mesmo decisiva.
Claro que a ilha nunca esteve fora dessas atividades de suporte, mas este ano surgiram fortes dúvidas, até quanto à nossa torcida. Como sabe a meia dúzia de três ou quatro que me lê todo domingo, Zecamunista estava para, mais uma vez, pôr em ação seus talentos subversivos, e realizar passeatas de protesto, nos dias de jogos do Brasil. Mais tarde, ele próprio adaptou o horário das passeatas, a fim de dar tempo de o pessoal ver os jogos. Mas, na semana passada, para surpresa geral, anunciou que não haveria mais passeatas. Foi vencido num debate em que seu opositor, Geraldo Tuberculoso, mostrou com eloquência que o jogo de futebol não se resume aos noventa minutos de bola rolando. O jogo de futebol tem o antes, o durante e o depois, sendo que muitas vezes o que menos interessa é o durante, que passa ligeiro e não se compara a um bom depois de vários dias, com melhores momentos, replay, tira-teima, discussão e tudo. Desta forma, é uma violação dos direitos humanos do torcedor marcar passeatas perto dos jogos da Copa e possa ser até crime hediondo, pois privar o torcedor de seu depois, em alguns casos, mata.
Zeca cedeu à vontade da maioria, embora muitos tenham questionado seu patriotismo. Era chato acusar um membro da coletividade tão respeitado e de currículo tão invejável, mas a verdade é que parecia haver motivos para fazê-lo suspeito da prática de quinta-colunismo. Comentava-se abertamente que ele não torceria pelo Brasil. Ou, pior ainda, torceria contra o Brasil. Ora, vamos e venhamos, tudo tem limite neste mundo e torcer contra a pátria amada fica muito chato para um cidadão de Itaparica. E foi envolvido nesse clima de desconfiança e desaprovação que ele, melindrado, não falou nada e se recolheu a sua residência.
Como a Copa já se inicia na quinta-feira, a preocupação com ele deu lugar a providências urgentes para escorar a seleção por todos os lados. Com essa conversa de passeata, perdeu-se tempo precioso. As medidas de ordem pessoal eram da responsabilidade de cada um, mas a coletividade tinha que empreender alguma ação conjunta, algo que simbolizasse a união de todos em torno da vitória. Prontamente se chegou ao grande santo Santo Antônio, cujo dia é na próxima sexta e cujo mês é este. Sempre houve novenas de Santo Antônio na ilha e agora, mais do que nunca, cabia recorrer a ele. Dona Fabinha, grande devota dele e beata irretocável, de bom grado realizaria o trabalho de organização. E assim estavam deliberando, quando uma conhecida voz roufenha se vez ouvir à soleira do bar.
— Vocês me acusam de falta de patriotismo, mas são vocês que podem estar cavando uma derrota para o Brasil! — disse Zecamunista. — Eu não me contive e vim fazer um alerta! É meu dever!
— Deixe de ser doido, Zeca, nós estamos aqui acertando umas novenas de Santo Antônio, para ele ajudar a seleção.
— É isso mesmo! A bom santo vocês se encomendam!
— Você não vai falar mal de Santo Antônio, só faltava esta.
— Falar mal, não, eu vou aos fatos! Santo Antônio é português! Português! E até para os portugueses, andou aprontando, chegou a ser rebaixado no Exército, por fazer corpo mole contra os holandeses! Se o padre Vieira não reclama e chama ele às falas, ele tinha passado a guerra de férias! Ele deve estar com Cristiano Ronaldo e não abre!
Uma sombra enregelada abateu-se sobre o ambiente. Não se podia negar aquilo, Zeca sabia do que estava falando. E, mesmo que não se desconfiasse da lealdade do santo, é chato pô-lo numa batina justa, tendo que escolher entre sua terra de berço e outra onde é tão benquisto. A verdade inescapável é que não dá para contar com Santo Antônio nesta Copa, o mundo vai acabar.
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