segunda-feira, março 24, 2014

Para não descarrilar o vagão Argentina - SÉRGIO LEO

VALOR ECONÔMICO -24/03

Há muitas mensagens ocultas nos pronunciamentos do governo brasileiro sobre a Argentina, nos últimos dias. Enquanto especialistas discutem se o Brasil deve ou não se livrar dos sócios no Mercosul para tentar voo solo nas negociações comerciais internacionais, o governo brasileiro trava discussões delicadas para acertar o passo com o vizinho de que dispõe.

Há algum tempo, a Argentina é um dos maiores mercados para as vendas externas de manufaturados brasileiros com maior valor agregado - ainda que os automóveis sejam uma parcela excessiva nessas exportações.

De um lado, Brasília busca uma saída para o sufoco cambial argentino; de outro, batalha para que a Argentina não pese nas negociações de livre comércio com a União Europeia.

Na sexta-feira, autoridades do governo brasileiro informaram que o Mercosul apresentará uma "proposta conjunta" de redução de tarifas aos europeus. Não há alternativa: nas últimas reuniões do bloco, os emissários de Cristina Kirchner disseram que não aceitam a sugestão defendida por Brasil, Uruguai e Paraguai, de que os argentinos apresentassem uma proposta à parte, que adiaria a liberalização do mercado da Argentina aos europeus, mas permitiria aos sócios liberalizar logo os seus.

E há também a questão cambial. Com reservas estrangeiras em queda, sem muitas opções de financiamento e temerosos da intervenção estatal e da desvalorização do peso, os argentinos têm evitado empréstimos de prazo mais longo, o que só agrava o aperto no mercado de câmbio.

A escassez de financiamentos agrava a queda no comércio bilateral, que afeta mais severamente a Argentina: as vendas brasileiras ao vizinho caíram 16% no primeiro bimestre, enquanto as compras brasileiras de produtos argentinos despencaram 27%, pela média diária, em relação ao mesmo período de 2013.

Na conversa entre autoridades brasileiras e argentinas, há pouco mais de uma semana, avaliou-se que, com as últimas medidas do governo vizinho em relação ao câmbio, que aproximaram as cotações oficial e do mercado negro, surgiram condições para recuperar a confiança dos agentes econômicos e estimulá-los a tomar empréstimos de prazo mais longo.

Busca-se, agora, uma fórmula para garantir aos importadores e exportadores locais que podem tomar empréstimos de mais longo prazo sem temer uma retenção de seus pagamentos.

É uma tarefa desafiadora, as empresas temem assumir compromissos e encontrar barreiras para remessa de dólares aos credores e já vêm evitando, por isso, compromissos que vencem no segundo semestre de 2014, ou até um pouco antes.

Na prática, o governo de Cristina Kirchner, que recentemente passou a reter a saída de dólares que ingressam no país, reconhece que tem de dar aos empresários garantias de que não imporá obstáculos aos pagamentos por créditos de prazo maior.

O BC argentino pretende dar, aos créditos mais longos para importação argentina, maior facilidade de remessa de divisas - algo complicado de se fazer sem se admitir que há retenções heterodoxas de pagamentos e de importações.

É essa garantia dos governos, de que haverá dólares para pagar empréstimos no futuro próximo, o principal tema do memorando de entendimentos em discussão entre Brasil e Argentina, a ser firmado pelos dois países paralelamente à reunião do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), na Costa do Sauípe (Bahia), na quinta-feira.

Na sexta-feira, o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Mauro Borges, informou aos jornalistas que os governos estudam uma "linha de crédito" para facilitar o comércio, a ser oferecida pelos bancos comerciais.

O governo brasileiro não colocará um real do Tesouro para apoiar o comércio com a Argentina; mas seguem em operação as linhas tradicionais do BANCO DO BRASIL e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para apoio às exportações e importações de produtos brasileiros.

Não há, até agora, conversas para que esses bancos públicos brasileiros tenham maior engajamento nas transações bilaterais. Até porque o problema é na outra ponta. Os importadores argentinos pressionam a demanda por dólares, porque temem assumir compromissos e se sujeitar a multas ao ter suas remessas retidas pelo governo local. Melhor seria que o governo argentino criasse, no mercado local, um instrumento de mitigação de riscos para os emprestadores e tomadores de crédito, papel que, no Brasil, é desempenhado por um sofisticado mercado de derivativos.

É nesse cenário de restrições que os negociadores do Brasil, Paraguai e Uruguai tentam convencer os argentinos de que devem aceitar prazos mais curtos de redução de tarifas e liberalização do mercado em um acordo com a União Europeia.

Reunidos na sexta-feira, os sócios do Mercosul não conseguiram concluir uma proposta considerada aceitável para começo de conversas com os europeus -os europeus, é bem verdade, também encontram dificuldades para oferecer uma abertura do mercado compatível com suas ambições de liberalização por parte dos sul-americanos.

Há um longo hiato entre a assinatura de um acordo e seu funcionamento a todo vapor, e é esse um dos argumentos usados para animar a generosidade das autoridades em Buenos Aires. Os argentinos parecem, pelo menos, dispostos a se empenhar nas negociações com os europeus, que se tornaram uma questão de honra para Cristina Kirchner - foi ela, aliás, quem relançou em 2010 as conversas, paralisadas desde 2004. Também na reunião do BID, nesta semana, os governos do Mercosul devem voltar a tentar um avanço nesse tema.

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