É preciso ser um incréu empedernido para não reconhecer a presença do fato político nas manifestações das jornadas de junho, tomando-as como um mero episódio da vida juvenil e de suas vicissitudes nas grandes metrópoles brasileiras. Sob esse viés, aqueles massivos acontecimentos, que suspenderam a marcha conhecida do nosso cotidiano com o registro da surpresa e do espanto, pertenceriam ao reino da Sociologia e da Antropologia Social. Decerto que os recursos dessas disciplinas para a observação de eventos desse tipo são, além de próprios, absolutamente necessários. Mas a eles não pode faltar, para que a narrativa seja compreensiva, uma abordagem política da cena especificamente brasileira. Sobretudo pela recusa manifesta dos personagens envolvidos em admitir a presença de partidos e personalidades políticas em seus atos de protesto. Admissão tácita de que se queria outra política.
Com as jornadas de junho, sob um governo há mais de uma década sob a hegemonia de um partido saído das fileiras da esquerda, constatou-se, à vista de todos, sua falta de vínculos com a juventude e a vida popular. E isso malgrado seus êxitos em sua política de inclusão social e de relativo sucesso, especialmente no mundo agrário, de modernização da economia. Estava ali, nas ruas, no clamor pela democratização das políticas públicas e por maior participação na definição dos seus rumos, o sintoma evidente de que nos encontramos no fim de um longo ciclo da política brasileira, qual seja, o da modernização.
Com efeito, tudo traduzido, o que a sociedade expressava era seu desconforto contra tudo isso que está aí. Desconforto provocado pela profunda dissidência entre as palavras e as coisas, assim enquanto as leis vêm assegurando inéditas garantias em termos de liberdades civis e públicas, enquanto as manifestações dos três Poderes republicanos reverenciam ideais de igualdade social, uma sociedade transfigurada por alterações de largo alcance em sua composição demográfica e estrutura de classes e ocupacionais não encontra na esfera pública, que se apresenta como uma reserva de poucos, canais a fim de que possa exigir a satisfação dessas promessas igualitárias.
A intensa energia da vida associativa, inclusive dos seus setores subalternos, e de sua rica e poliforme vida mercantil não se faz presente no sistema dos partidos, a não ser fragmentariamente. Quem vocaliza o empresariado paulista, o mais robusto do País, é a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), um órgão corporativo, assim como é a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) que exerce esse papel em nome dos interesses do agronegócio, uma das locomotivas atuais do capitalismo brasileiro. Quanto aos setores subalternos do campo, é o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), apartidário por opção, que se arvora em assumir essa representação. Os casos desse tipo se multiplicam e dispensam, porque notórios, ser listados. No caso, ainda chama a atenção a prática de boa parte dessas entidades ou de seus membros de favorecerem com doações partidos rivais nas disputas eleitorais.
Esse não é um registro trivial, uma vez que o usual em sociedades democráticas, em particular nas que vivem sob organização capitalista, é que o reino dos interesses não seja refratário - na escala em que é aqui - ao sistema de partidos. Sem eles os partidos perdem identidade e vínculos com a sociedade, tendendo a se comportar como máquinas orientadas para a sua própria reprodução. Essa patologia brasileira não é recente e, paradoxalmente, encontrou no PT antes de se tornar governo um dos principais arautos desse mal, como em suas críticas tanto ao sindicalismo nascido da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), que abafaria a livre expressão dos conflitos entre o capital e o trabalho, quanto ao nacional-desenvolvimentismo, que ataria politicamente a sociedade aos desígnios do Estado.
Fora de controvérsia que os governos do PT deram nova vida a essas duas políticas, reforçando a primeira com a legislação sobre as centrais sindicais e fazendo da segunda o Leitmotiv da sua linha de ação governamental. O presidencialismo de coalizão - prática que herdou de governos anteriores, simulacro de um parlamentarismo de fantasia a camuflar a soberania do Poder Executivo sobre o Legislativo - consistiu na modelagem política que lhe permitiu o movimento de camaleão de se apresentar como novo condutor do processo de modernização brasileira. Um longo fio vermelho comunicaria a era Vargas ao PT, em comum, nesses dois tempos, o retraimento da dimensão dos interesses diante dos partidos e a sua gravitação em torno do Estado.
A diferença, é claro, estaria no cenário institucional. O ciclo de modernização desencadeado pelo PT, com o estilo decisionista intrínseco a ele, estaria obrigado à difícil convivência com a Carta Magna de 1988, expressão de uma filosofia política centrada nos ideais de autonomia do indivíduo e da sociedade diante do Estado. Como amplamente verificado, eventuais obstáculos têm sido contornados e o processo de modernização segue o seu curso. Os interesses deslocados ou mal postos diante das políticas de Estado teriam de se conformar com a alternativa de recorrer ao Judiciário - uma das raízes fundas do processo de judicialização da política deve ser procurada aí - ou, em casos extremos, às ruas, como se testemunha desde os idos de junho.
O assim chamado poder incumbente, para que esse eufemismo à moda ganhe sentido, supõe uma prévia manifestação de vontade com origem numa esfera pública democrática. Se a manifestação dessa vontade estiver viciada por um presidencialismo de coalizão que a degrade como a vontade de um só Poder, não há incumbência, mas usurpação praticada em nome de um suposto interesse geral que um governante encarnaria. Se assim, para que partidos?
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