FOLHA DE SP - 24/10
O pobre Amarildo foi um morto comum. O morto Amarildo tornou-se arma política
O ato de tortura e morte do pedreiro Amarildo seria mais um da série infinita em que os criminosos são policiais. Um crime vulgar. Revelou-se um crime político. Pouco importa que não o fosse na origem. Nas consequências veio a sê-lo.
As responsabilidades e circunstâncias da morte estão esclarecidas, 25 PMs presos por diferentes presenças no episódio, e é indispensável justiça reconhecer, nesse resultado, a obsessiva competência da promotora Carmen Bastos, de policiais civis representáveis por sua chefe, delegada Marta Rocha, e sempre a de José Mariano Beltrame, secretário de Segurança. Além do PM, ou PMs, com o seu perigoso e iluminador testemunho.
É impossível medir a influência do movimento de opinião pública na ação investigatória. Não há dúvida de que foi forte. Mas não há como avaliar, também, quanto houve de motivação política no lançamento e no incentivo constante das cobranças de esclarecimento do caso. Em pouco, essas cobranças, até à simples menção do nome Amarildo, estavam transformadas em ataque político a Sérgio Cabral, mesmo nas menores oportunidades. "Onde está Amarildo?" tornou-se um slogan político devastador.
O desaparecimento de Amarildo, desde logo dado por sua família como obra da PM, incidiu no momento mais agudo da crise de desgaste que Sérgio Cabral criou para si, com uma sucessão de atitudes pessoais intoleráveis pela opinião pública -- por ele desconsiderada com arrogância da qual precisou, por fim, penitenciar-se. Sérgio Cabral passou a ser identificado como responsável pelo desaparecimento de Amarildo e pelo aturdimento de então da polícia, responsabilidade que não podia ser sua. Mas despropósito permitido pela política, com os efeitos esperados.
Até piores do que os efeitos visados. A campanha estendeu-se de Cabral para as UPPs, as unidades policiais criadas para a ocupação pacificante das favelas, e recaiu sobre o secretário Beltrame. Ou seja, o uso político da tragédia de Amarildo levou seu efeito corrosivo ao trabalho social que decorre do modelo de ação nas favelas, ou "comunidades", já com resultados que mudaram o convívio urbano e suburbano em grande parte do Rio.
O cerco a Cabral resvalou ainda sobre Eduardo Paes, o prefeito. Pode ser um efeito de menor duração, porque o prefeito tem um trabalho enorme a apresentar, em variedade geográfica que inclui a tão desprezada Zona Norte da cidade, em modernização de muitos tipos e sentidos, e em presteza de atenção a problemas reclamados como o Rio não via há muitas e muitas décadas. Mas o reflexo de Cabral pode atingir o futuro de Paes se o governador não conseguir recuperar política e eleitoralmente o PMDB que a sua crise enfraqueceu bastante.
O pobre Amarildo foi um morto comum nas mãos de policiais com vocação criminosa, entre tantos cujos nomes e destinos pouco ou nada importam à opinião pública. O morto Amarildo tornou-se arma política.
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