ESTADÃO - 09/06
Incrível, porém verdadeiro. Cidadãos brasileiros estão sendo induzidos a praticar o “dedurismo”, denúncia contra pessoas físicas e jurídicas e, desse modo, a fazer parte de um exército de agentes especiais que o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), órgão do Ministério da Fazenda, está organizando. Não se trata, como se pode pensar, da “delação premiada”, que réus usam para obter vantagens judiciais em processos criminais a que se submetem. A iniciativa, que agita prestadores de serviços e operadores do Direito, chama a atenção pelo abuso contra princípios constitucionais. Duas resoluções baixadas pela entidade (Resoluções 24 e 25, de janeiro passado), sob o escudo do combate aos crimes de lavagem de dinheiro, constituem o eixo da polêmica. Obrigam pessoas físicas ou jurídicas, que prestem serviços de assessoria, consultoria, contadoria, auditoria, aconselhamento ou assistência em operações, a fazer um cadastro de clientes e guardá-lo por cinco anos. A par da exigência de declarar bens ou serviços prestados no valor igual ou superior de R$ 5 mil, o “agente” que o Conselho está criando é obrigado a “denunciar” seu cliente, caso, seis meses depois, este fizer nova operação que implique valor igual ou superior a R$ 30 mil. E se o prestador se recusar a entrar nesse “grupamento”? Será submetido à multa de até R$ 200 mil, cassação do registro profissional e vedação do exercício da atividade.
É mais que sabido que cabe ao Estado a tarefa de investigar, fiscalizar, controlar e combater todas as veredas que levam às ilicitudes, a partir do tráfico de drogas, de armas, lavagem de dinheiro, peculato, furtos e roubos. Passar o Brasil a limpo deve ser anseio contínuo dos órgãos públicos, o que demanda medidas e ações para defender a sociedade, investigar as máfias que agem nos intestinos do Estado e extirpar os tumores que corrompem os sistemas produtivos. A premissa se torna mais premente ante o paradigma do “puro caos”, que o professor Samuel P. Huntington tão bem descreve em seu Choque de Civilizações: “uma quebra no mundo inteiro da lei e da ordem, Estados fracassados, anarquia crescente, uma onda global de criminalidade, máfias transnacionais, cartéis de drogas, crescente número de viciados, debilitação generalizado da família, declínio na confiança e na solidariedade social em muitos países, violência étnica, religiosa e civilizacional e a lei do revólver predominando em grande parte do planeta”. Tal moldura sugere a maximização de energias por parte das estruturas que executam controles na frente das finanças. Mas qualquer ação ou medida há de se ajustar aos primados consagrados na Carta Magna.
Emerge, aqui, a primeira indagação: a ordem de obrigações e punições emanadas nas duas resoluções do Conselho de Controle de Atividades Financeiras fere ou não princípios da livre iniciativa e do sigilo de dados pessoais, garantidos na Constituição? O tributarista Raul Haidar lembra que apenas leis abrigam o poder de gerar obrigações e sanções. O princípio de que o direito deve se fundar na Constituição, jamais em medidas, decretos, resoluções e até em leis consideradas inconstitucionais, é um dos mais sagrados das Nações democráticas. Desvios e ilegalidades que ocorrem na vida institucional revelam muito sobre o estado civilizatório que o país atravessa. É o caso de enxergar um viés politiqueiro na planificação e execução de políticas de monitoramento do universo dos negócios, não se descartando a hipótese de que grupos, hoje imperando na administração pública, se esforçam para impor uma visão onipotente, onisciente e onipresente. A onipresença fica patente na intenção escancarada de multiplicar os olhos do Big Brother, não deixando nenhum espaço fora de sua vista (George Orwell ficaria embasbacado); a onisciência se apresenta no modo unívoco de entender que o Estado encarna a moral, é a razão efetivada, um Todo ético organizado, na expressão de Hegel, não cometendo erros; e a onipotência se apresenta na atitude rude de rasgar a letra constitucional.
Mais uma observação. Ao contrário da cultura anglosaxã, de rígida obediência à normas, a cultura tupiniquim usa frequentemente as curvas para se moldar aos climas impostos. Será que os inventivos controladores do Conselho não imaginaram o cadastramento de operações falsas, malandragem para atrapalhar concorrentes? Perfis mafiosos ou de má fé não produzirão denúncias apenas para embaralhar as cartas do jogo? É razoável a hipótese de que alguns, entre esses “agentes do Estado”, agirão em causa própria, usando a norma para preencher conveniências pessoais. Na conta das probabilidades, não se descarta a beligerância entre amigos e clientes, quando uns descobrirem que outros apontaram o “dedo duro”.
Nessa moldura, entra bem a imagem de Sólon, um dos sete sábios da Grécia antiga, também conhecido como o pai da Democracia. Perguntaram a ele se as leis que outorgara aos atenienses eram as melhores. Respondeu: “dei-lhes as melhores que podiam eles aguentar”. A resposta do filósofo exprime moderação e clareza mental, valores que construíram a grandeza de Atenas. Ao longo da história da civilização, as Nações beberam nessa fonte de conhecimento, produzindo boas leis, plasmando bons princípios e sólidos valores sobre os quais repousam o edifício das liberdades e os fundamentos do Estado Democrático.
É o caso de indagar aos dirigentes do COAF se as disposições que outorgaram aos brasileiros são condizentes com o império do Direito ou desenham a imagem do Leviatã, o monstro bíblico, cruel e invencível, plasmado pelo ideário absolutista de Thomas Hobbes. Talvez seja o caso de Suas Excelências refletirem sobre a lição de Montesquieu em seu Espírito das Leis: “a única vantagem que um povo livre exerce sobre outro é a segurança que tem de que o capricho de um ou de outro não lhe tirará seus bens ou sua vida. Um povo com esse bom senso seria tão feliz quanto um povo livre”.
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