FOLHA DE SP - 07/02
A polidez excessiva é diretamente proporcional à violência do desejo que ela mascara e contém
Um pré-adolescente me contou que ele sempre deixa as mulheres passarem primeiro nas portas, nas catracas e em todos os limiares da circulação social, segundo ele foi instruído pelos pais e pelos avós.
No entanto, esse gesto cavalheiro é acompanhado por um pensamento que ele não consegue evitar e que, um dia, ele receia, poderia explodir como um grito indomável, impossível de ser mais uma vez reprimido.
Deixo você imaginar as consequências que esse grito teria, pois, a cada vez que ele, nobremente, estende a mão para convidar uma mulher (moça ou idosa, tanto faz) a passar antes dele, o que insiste na sua mente é a frase: "Empina a bunda, sua vaca!".
Não acho estranho: as boas maneiras existem, provavelmente, para reprimir pensamentos, condutas e desejos, que, se liberados, tornariam desagradável a nossa convivência social.
Não conheço estudos sobre o costume de deixar as mulheres passarem primeiro. Algumas más línguas dizem que nasceu como uma precaução masculina, caso houvesse assassinos esperando o homem do outro lado da porta. Outras más línguas afirmam que era um jeito de os homens controlarem as mulheres, pois, se elas fossem autorizadas a ficar atrás, fugiriam na primeira ocasião.
No que me toca, aprendi que a mulher deve passar sempre antes do homem, salvo na descida de uma escada, quando o homem, indo na frente, tapa a perspectiva inconveniente de quem, a partir do piso inferior, procurasse olhar por baixo da saia da mulher. Esse deve ser um preceito recente, de quando as saias se encurtaram, mas a própria regra de deixar a mulher passar primeiro tampouco é antiga.
Seja como for, há uma distância notável entre, no meio de um saque, jogar a mulher em cima do ombro e levá-la embora, para estuprá-la mais tarde, com calma (quem sabe, entre amigos) e, no extremo oposto, abrir a porta para a mulher passar primeiro. Como ilustra a dificuldade do jovem que mencionei, a polidez excessiva é diretamente proporcional à violência do desejo que ela mascara e contém.
Em suma, as regras de boas maneiras podem parecer risíveis e são quase sempre hipócritas, mas, justamente por isso, elas são úteis e necessárias -porque não poderíamos conviver sem repressão e hipocrisia.
Norbert Elias escreveu "O Processo Civilizador" (Zahar) em 1939. Pobre, exilado em Londres no momento da maior barbárie do século 20, Elias procurou e encontrou a origem da subjetividade e da liberdade modernas logo nos tratados de boas maneiras.
Isso porque as regras de etiqueta nos ensinam a domesticar os impulsos mais perigosos e, mais ainda, porque a preocupação com o olhar do vizinho de mesa nos obriga a sermos minimamente graciosos.
Chato? Talvez. Mas a novidade moderna é que a elegância é uma qualidade social permitida a todos -basta querer. Se o requisito é a elegância (e não a nobreza, que não depende da gente), qualquer um pode ter o que precisa para ser convidado a qualquer jantar.
Engraçado: criticamos as aparências e a etiqueta como se fossem leviandades, sem pensar que seu triunfo nos libertou das barreiras intransponíveis de uma divisão social decidida pelo berço no qual cada um tinha nascido.
Parêntese: estou lendo "Consider the Fork: A History of How We Cook and Eat" (pense no garfo: uma história de como cozinhamos e comemos, Basic Books), de Bee Wilson, que conta muito bem como fomos transformados pela evolução dos costumes de cozinha e de mesa.
Enfim, estava no meio dessas reflexões quando, sábado passado, fui assistir a "As Regras da Arte de Bem Viver na Sociedade Moderna", de Jean-Luc Lagarce, no Sesc Ipiranga, em São Paulo (imperdível, e atenção: só nos próximos três sábados, às 19h30). A atuação de Lorena da Silva é perfeita. E o texto, francamente engraçado, é uma pérola de inteligência.
Lagarce nos lembra os usos e costumes dos rituais da vida, do nascimento até a morte, passando por batismo, casamento, bodas de prata etc. Ele escreveu "As Regras" em 1993, dois anos antes de morrer de complicações relacionadas à Aids; pelo destino que o espreitava, ele poderia ter sido sarcástico com a suposta "frivolidade" de nossos rituais. Mas ele tomou outro caminho: ele fez, sim, que as regras básicas de nossa etiqueta nos parecessem estranhas e eventualmente hipócritas, mas sem que a gente perdesse de vista que elas são a própria trama de um mundo que amamos -e do qual ele já devia sentir saudade.
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