Borges e Bioy Casares despacham para a lata de lixo uma multidão de grandes escritores
Maria Kodama, a viúva de Jorge Luís Borges (1899-1986), declarou guerra contra a memória do melhor amigo do escritor. Chamou Adolfo Bioy Casares (1914-1999) de "covarde" e de "dejeto humano".
O motivo desses ataques, que se renovaram nos últimos tempos, é um livro que Bioy deixou para publicar postumamente. Trata-se do registro das conversas, quase diárias, dos dois amigos.
"Borges", por Bioy Casares, cobre mais de 40 anos de diálogo entre os autores, e sua primeira edição, de 2006, tem 1.600 páginas.
Há espaço de sobra para todo tipo de fofoca e maledicência. Vem daí a acusação de "covardia", feita por Maria Kodama: os ataques a outros literatos argentinos, sem contar o que se diz das mulheres que faziam parte do círculo de Borges, só foram publicados depois da morte de Bioy.
O livro, pelo menos na sua versão completa, não tinha me animado muito. Li uma resenha das mais negativas desse diário. Seria uma coleção de despautérios, na maior parte das vezes a respeito de contemporâneos portenhos sem nenhuma importância, como Eduardo Mallea ou Miguel Etchebarne.
Mas não é bem assim, pelo menos na edição resumida que saiu no ano passado pela editora Backlist. O organizador, Daniel Martino, cortou mil páginas da versão original, e esse "Borges - Edición Minor" pode valer como um verdadeiro curso de literatura universal.
Sem dúvida, há enormidades em cada página. Como em geral acontece quando os interlocutores concordam muito, a conversa tende a se transformar numa corrida para ver quem é o mais radical.
Numa orgia condenatória capaz de produzir calafrios em Ayres Britto e Joaquim Barbosa, Borges e Bioy despacham para a lata de lixo uma multidão de grandes escritores.
Joyce escreveu contos "muito bobos", diz Borges. "Não era muito inteligente", acrescenta Bioy. Paul Valéry não passa de um ressecado acadêmico. "Homem muito inteligente, sem nenhum dom para a literatura." O "Fausto" de Goethe não passa de um blefe.
Nos romances de Henry James, resmunga Borges, há diálogos cheios de subentendidos, reticências e matizes, "que o leitor não descobre e não crê que valha a pena descobrir". Como poeta, Edgar Allan Poe "é mínimo". Thomas Mann "era um idiota".
Salvam-se, como sempre em Borges, alguns autores subestimados, como Kipling, Stevenson e Chesterton; entre os grandes, sempre são elogiados Cervantes, Kafka e Dante Alighieri.
Não se aproveita muito de opiniões tão genéricas e desbocadas. A grande utilidade do livro está nos muitos momentos em que Borges e Bioy analisam um detalhe isolado, um título, um verso, uma expressão qualquer, sob a ótica de um gosto literário quase impossível de tão exigente.
Os dois amigos analisam, por exemplo, a obra poética de um colega argentino, Carlos Mastronardi.
Bioy elogia o que lhe parece ser o único verso mágico desse autor: "Una vez yo pasaba silbando entre arboledas". A sonoridade, naturalmente, perde-se na tradução: "Uma vez eu passava assobiando entre alamedas".
Para Bioy, a beleza do verso está no fato em que o poeta parece estar vendo a sua própria figura no cenário. Borges retruca: "É um verso ridículo e muito vaidoso. Nós o vemos -e o pior é que ele se vê a si mesmo- de longe, pequenininho, como uma espécie de Charles Chaplin".
Num romance de aventuras inglês, Borges descobre "una buena compadrada", ou seja, uma gabolice típica dos velhos brigões do interior argentino.
Eis a frase. "Veja o senhor, acontece todo tipo de coisa importante na vida de uma pessoa, mas por incrível que pareça nunca se esquece a cara do primeiro homem em quem se deu um tiro."
A frase, comenta Borges, "dá por estabelecido que o interlocutor também já atirou em alguém".
É, como se vê, uma forma de ler muito imaginosa e sutil, e há exemplos disso a todo momento. Uma última citação.
Borges e Bioy discutem o que faz de "Os Três Mosqueteiros" um bom título de romance. Sugere, diz Bioy, "os prazeres da camaradagem". Borges vai mais longe: "Porque sugere o prazer de encontrar diferenças na identidade".
Talvez os dois estejam falando da mesma coisa -da amizade, coisa que este livro testemunha de forma emocionante, e também divertidíssima.
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