FOLHA DE SP - 18/04/12
Gente muito "popular" pode fazer arte radicalíssima, isto é, sem a preocupação ingênua do "certinho"
Nem todo mundo gosta daqueles bonequinhos de barro feitos pelo Mestre Vitalino. Ainda mais porque os pequenos cangaceiros e burricos se banalizaram em imitações sem-fim, vendidas em qualquer loja para turistas.
Um amigo chegou a dizer que, se dependesse dele, todas as figurinhas de barro do Nordeste seriam moídas de modo a fabricar tijolos para o programa "Minha Casa, Minha Vida". Estou longe de propor coisas desse tipo. Mas durante muito tempo manifestei grande desprezo pelo artesanato popular. Desconfiava do paternalismo de tantos elogios à criatividade dos oprimidos.
Para mim, esse tipo de arte era menos sinal de criatividade do que de opressão. Sem meios técnicos para comunicar o que queria, o artista popular era como um pássaro batendo a cabeça nos vidros de uma janela que não conseguia abrir.
Felizmente, abandonei essa opinião. Basta ir ao Pavilhão da Criatividade, no Memorial da América Latina, para encontrar nas peças populares praticamente tudo que se espera da arte em geral: invenção, beleza, capacidade de recriar o mundo.
De resto, a diferença entre arte popular e arte culta nem sempre se sustenta. Um europeu, vendo alguns quadros de Guignard (penso num ou outro Cristo ou naquelas irmãs rígidas, sentadinhas lado a lado num marquesão colonial), mobilizaria facilmente suas ideias preconcebidas a respeito do Brasil.
Eis aí, pensaria, um artista ingênuo, inculto como a totalidade dos brasileiros... Algumas pinturas de Tarsila, por outro lado, fingem uma inocência caipira que talvez enganasse um estrangeiro.
O contrário também acontece: gente muito "popular", pela condição social, pode fazer arte radicalíssima, isto é, sem a preocupação ingênua do "certinho".
"Teimosia da Imaginação" é o nome de uma mostra atualmente em cartaz no Instituto Tomie Ohtake, reunindo "dez artistas brasileiros". Omite-se de propósito o fato de serem artistas populares.
Mas quem vê, na entrada da exposição, os cartazes com a foto de cada artista -Jadir João Egídio, Isabel Mendes da Cunha ou Cícero Alves dos Santos, conhecido como "Véio"- percebe que se trata de pessoas muito pobres. Não só pela origem social, mas pelo tipo de vida que ainda parecem levar, mesmo depois de incluídos no mercado de arte.
Pouco importa. É hora de entrar e ver o que eles fazem. Sim, os bonecos de barro estão lá, mas perderam a simplicidade nas esculturas de Manoel Galdino de Freitas (1924-1996).
Existem algumas imagens de Lampião, como manda a expectativa tradicional. Só que o barro foi tantas vezes perfurado, para imitar os ornamentos da vestimenta de couro, que a atividade do artista não mais se limitou a vencer, a superar as dificuldades técnicas do tema. Ganhou autonomia -e poderá voar em outras direções.
Figuras fantásticas vomitam seres humanos, e divindades meio mexicanas meio cangaceiras são criadas num clima que não é de terror religioso, mas sim de moderna (e culta) descrença. As cerâmicas de Dona Isabel são outro caso. A tradição ordena imagens de noivas, "moças bonitas" com corpo de moringa e tonalidades de ocre. O domínio técnico, entretanto, tornou-as lisas, impecáveis, reluzentes.
Numa serenidade alcançada pela completude, sem mais estar em luta com a matéria-prima, mulheres de barro dão de mamar aos filhos. Mantêm-se altivas, mas se libertaram da rigidez.
Mas a luta contra a matéria-prima, afinal de contas, é o que arte erudita moderna encontrou de fascinante na cultura indígena ou africana. Aparece com força total nas esculturas do "Véio", Cícero Alves dos Santos, feitas de raízes, galhos e troncos; e mais ainda na obra de José Bezerra, de uma aspereza neolítica, de uma concisão total.
Concisão que é consciência: não há o esforço de "caprichar", a tentativa de ser alguma coisa que não se é. No fundo, talvez seja essa a diferença que importa, para além das distinções entre "popular" e "erudito". Há quem sabe o que está fazendo e quem não sabe direito, corrigindo-se, tentando acertar, tentando agradar -e aí se dá mal.
Essa consciência de si mesmo não se confunde com a capacidade de dar explicações sobre a própria obra; grandes artistas eruditos são incapazes disso também. Trata-se de saber quando parar, de saber o que se quer, independentemente de qualquer ordem exterior; não é questão de técnica ou de repertório, mas sim de forma e liberdade.
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