REVISTA ÉPOCA
Eu me solidarizo com os ciganos – mas o papel de um dicionário é mostrar todos os sentidos das palavras
É possível mudar o modo de pensar de um povo suprimindo palavras? Proibindo livros e comemorações? Essa tentativa, que se assemelha às proibições das ditaduras, está em curso aqui, no Brasil. É um assunto que me toca muito, pois vivo de escrever. Quando alguém determina o que pode ou não ser escrito, mexe com o mais íntimo de mim. O Ministério Público Federal de Uberlândia, Minas Gerais, entrou com uma ação para retirar de circulação o Dicionário Houaiss, um dos mais conceituados do país. O órgão alega que a obra contém referências preconceituosas e racistas aos ciganos. Entre os significados para a palavra “cigano” o Houaiss se refere ao uso “pejorativo” do termo: “que, ou aquele que trapaceia, velhaco, burlador”. Estranha interpretação do Ministério Público. Ao explicar que se trata do uso pejorativo, o dicionário deixa claro que não é a favor. Mas que também se usa o termo nesse sentido. O caso teve início em 2009, quando uma pessoa de origem cigana fez uma representação contra os dicionários brasileiros. Segundo o Ministério Público, outras editoras fizeram a mudança. A Objetiva, que publica o Houaiss, não o fez, por ter apenas o direito de publicação. O dicionário pertence, de fato, ao Instituto Houaiss.
Eu me solidarizo com os ciganos, que não querem ser chamados de velhacos. Nenhum povo deve ser definido por um adjetivo sórdido. Mas o papel de um dicionário é mostrar como as pessoas falam, qual o significado das palavras. E, no caso do Houaiss, que é bem completo, tanto no sentido coloquial como no erudito. Não diz o que é certo ou errado. Espelha o modo de falar do país. Retirar um dicionário de publicação para mim é inacreditável.
Há algum tempo, o Conselho Nacional de Educação publicou um parecer sugerindo a exclusão do livro Caçadas de Pedrinho das escolas públicas, sob a alegação de que levava à discriminação racial, pela maneira como o autor se referia à personagem Tia Nastácia. Criou uma celeuma entre educadores e ases da literatura. Foi uma gritaria. O Conselho voltou atrás. Mas ficaram as sequelas. Há algum tempo dei uma palestra numa feira de livros do ABC paulista. Uma contadora de histórias me perguntou o que eu achava da proibição de muitas escolas, onde não podia narrar os livros de Lobato. Admirei-me. Mesmo não oficialmente, nosso maior autor infantil já é boicotado. Junto a ele, uma leva acima de qualquer suspeita, como Santo Antonio, São João e São Pedro. Ééééé... Muitas escolas evitam comemorar as festas juninas porque seria discriminação contra as crianças não católicas! Fui criado na Igreja Presbiteriana. Na minha infância, participei das festas e me diverti muito. Nunca me senti discriminado. Que moda é essa agora?
Eu me solidarizo com os ciganos – mas o papel de um dicionário é mostrar todos os sentidos das palavras
É a mesma moda que me faz ouvir, sempre, que estou na “melhor idade”. Isso sim me faz sentir discriminado. É uma tentativa de maquiar a entrada nos 1960 anos e o que vem depois. Melhor idade pode ser qualquer uma, aos 7, aos 20, aos 40, aos 80. Depende da vida que se leva. Mudar as palavras muda a velhice?
Muita gente já pensou dessa maneira, e as primeiras vítimas dos autoritários costumam ser os livros. A Igreja já teve seu índex de títulos proibidos. Entre eles, A origem das espécies, de Charles Darwin. O mundo deixou de respeitar a teoria da evolução das espécies? Os editores de Ulisses, do irlandês James Joyce, sofreram um processo nos Estados Unidos, onde cópias do livro chegaram a ser confiscadas e destruídas, devido a seu conteúdo erótico. Ninguém nega que ele tenha revolucionado a literatura mundial. Durante o governo militar no Brasil, a posse de livros considerados “de esquerda” dava até cadeia. E foram proibidos. Nem por isso os militares se mantiveram no poder. Não se muda o modo de pensar de um povo proibindo palavras e livros. O termo que evitei usar até agora é “censura”, porque muito desgastado. Nunca se soube de um povo que tenha evoluído cultural, social e politicamente com a censura. Mas por meio da educação, da discussão de valores, dos direitos do cidadão. Essa é a questão. Onde vamos parar se até Santo Antônio já está sendo exonerado?
E os ciganos? Machado de Assis, em Dom Casmurro, possivelmente o melhor romance da literatura brasileira, descreve Capitu como de “olhos de cigana, oblíqua e dissimulada”. E aí? Alguém vai proibir Machado de Assis? Vão retirar nosso maior romance de circulação? Vamos agir como palhaços diante de todo o mundo?
Estou esperando para assistir ao escândalo.
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