O GLOBO - 31/12/11
Deu outro dia no Ancelmo: "O brasileiro pobre acha que a vida melhorou nos últimos anos. Pesquisa do Ipespe, de Antonio Lavareda, mostrou que, para 85% dos brasileiros da classe C, a vida deles está melhor, comparada à de seus pais. E, para 87%, a vida de seus filhos ainda será melhor. Para os próximos meses, 81% planejam comprar casa própria; 61%, uma TV de plasma; 60%, um carro; e 56%, um computador."
E isso deve ser mesmo verdade. Os ingleses acabam de anunciar que já somos a sexta economia do mundo, tendo ultrapassado o próprio Reino Unido. E a presidente Dilma diz que, no ano que vem, o crescimento do PIB será de 5%, e a inflação não passará da meta. Aliás, o Ibope apurou que, em seu primeiro ano de mandato, a presidente tem uma aprovação popular superior às de Fernando Henrique e Lula no mesmo período. Bem que o comercial da Caixa Econômica Federal vem nos garantindo que a vida do brasileiro continua melhorando e que 2011 "foi um ano inesquecível para o Brasil e para milhões de brasileiros".
Mas para tudo há sempre controvérsias. Somos a sexta economia do mundo, mas nosso ministro da Fazenda avisa que ainda estamos muito aquém dos europeus em matéria de renda per capita. Ou seja, o Brasil vai muito bem; o brasileiro, nem tanto. A controvérsia não acaba nunca; cada vez que damos um passo à frente, um novo obstáculo surge diante de nós. Talvez seja esse o modo mais simples de explicar o que é a vida.
A nova classe média brasileira cresce; mas ainda temos uns 20 milhões de cidadãos (todos o são) abaixo da linha de pobreza. João Gilberto ganhou ação contra a EMI, recuperando o direito de proteger suas obras-primas; mas teve que cancelar os shows em que celebraria seus 80 anos de idade. A chamada partícula de Deus, o bóson de Higgs que decifra todos os mistérios da matéria, parece que foi enfim encontrada; mas cientistas europeus e americanos criaram em laboratório uma linhagem mortal de vírus da gripe aviária. Antonio Pimenta Neves e Nem foram finalmente presos; mas tantos corruptos e corruptores (esses também existem) andam à solta por aí. Kim Jong-il morreu; mas Vaclav Havel também. E assim por diante.
Não sou do contra, reconheço que 2011, de um modo geral, foi mesmo um ano muito bom para todo mundo. Mas peço licença para dizer que, para mim, foi uma boa porcaria.
Sobretudo porque nele perdi dois irmãos que me fazem muita falta. Um, Raphael de Almeida Magalhães, bem mais velho que eu, me ensinou muita coisa, além de me dar o exemplo permanente de generosidade e solidariedade, de obsessão pelo Brasil. Sendo essa última uma virtude igualmente presente no caráter do outro que se foi, Gustavo Dahl, meu querido companheiro de geração, o mais elegante e culto militante do Cinema Novo.
Menos graves foram os desentendimentos com pessoas de quem gosto (o amor pode ser unilateral, de mão única), como o jornalista e escritor Arnaldo Bloch. Ele andou escrevendo umas coisas que provocaram minha justa ira, não deixei a cabeça esfriar, respondi com o coração ainda em chamas, fui excessivo. Mas como o mundo é redondo e nós estamos aí, um dia a gente se esbarra. Feliz ano novo, Arnaldo.
Gosto do afeto solidário da festa de réveillon; mas gosto mesmo é de Natal, de todos os natais. Tudo que começa com alegria e esperança merece nossa adesão, mesmo que depois nos decepcione. O poeta, romancista e pintor Jorge de Lima, no ensaio "Todos cantam sua terra", compara as culturas portuguesa e espanhola, a partir de suas tradições cristãs. Enquanto para os espanhóis a representação máxima do cristianismo está na Paixão, a crucificação e morte de Cristo, para os portugueses o centro da religião está em seu nascimento, na candura do presépio de Natal.
Em "Andrei Roublev", de Andrei Tarkovski, invasores asiáticos massacram um vilarejo de camponeses russos, na Idade Média. Ao entrar na igreja local, um invasor curioso pergunta ao pároco quem é o homem a sangrar numa cruz. O padre responde que é o Cristo, o Deus de sua religião. O mongol reage com ira, se julga ludibriado, imagine se um deus vai se deixar sofrer daquele jeito. E corta a cabeça do pároco.
A grande virtude do cristianismo dos evangelhos e das primeiras pregações sempre foi a sua humanidade. Qualquer um podia se identificar com um Deus que se torna homem, ao contrário da tradição politeísta em que homens se transformam em deuses violentos e cruéis. O cristiniamo começou a perdê-la com a ordenação disciplinar das epístolas paulinas, os penduricalhos rituais criados na Idade Média, a cruel cegueira da Inquisição, o aparato milionário que resiste ao tempo. O Deus que se tornou homem e se deixou flagelar foi sendo, aos poucos, sufocado por homens que se julgaram deuses.
O ano já ia acabar quando me deparei, na primeira página dos jornais, com aquela fotografia do menino sardônico ao lado do pai todo satisfeito. Olhos bem abertos, o filho de Jader Barbalho nos mostrava a língua e abanava as orelhas com a mão, a nos dizer claramente: "Vocês são uns otários, seus burros! Papai é que é fogo!"
Que 2012 não nos leve mais ninguém querido e nos devolva a candura do Cristo na lapinha. E que nos poupe dos meninos espertos e de seus pais vitoriosos.
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