sábado, dezembro 31, 2011
Quando entra o terapeuta - MARCELO RUBENS PAIVA
O Estado de S.Paulo - 31/12/11
Onde você estava?, perguntou o marido.
"O que é isso, controle?"
"Curiosidade."
"Na terapia."
"Na onde?"
"Tá duvidando?"
"E desde quando você faz terapia?"
"Desde hoje", ela respondeu e começou a andar pela casa, como se não quisesse alongar a conversa.
"Que terapeuta?"
"Você não conhece."
"E como você conheceu?"
"Uma amiga indicou."
"Que amiga?"
"Você também não conhece."
Claro. O único terapeuta que ele conhecia era de cães, com quem jogava tênis no clube.
E amigas que indicam terapeutas são sempre aquelas que os maridos não conhecem. Essas intrusas que, numa conversa de banheiro, ao invés de enumerarem as novidades da indústria cosmética, sugerem terapias.
Por que têm que se meter em algo que, acreditam os maridos, pode e deve ser resolvido na intimidade do lar? Deveriam indicar um restaurante novo, um filme genial, um livro irresistível.
"Quando você começou a pensar em fazer terapia?"
"Depois das férias."
"Depois daquela viagem paradisíaca em que acampamos na praia mais limpa e deserta no raio de duzentos quilômetros, em que não choveu um dia, comemos peixes pescados na hora, não ficamos gripados, nem fomos atacados por borrachudos, bichos geográficos, águas-vivas, piranhas?!"
"Não existem piranhas no mar."
"Não mude de assunto."
Ela entrou no banheiro. Trancou. Ligou o chuveiro. Ele continuou, através da porta.
"Por quê?"
"Achei uma ideia interessante", ela disse e entrou no chuveiro.
Terapia não é para deprimidos, melancólicos, esquizofrênicos, paranoicos, insones, ansiosos, viciados, alcoólatras, dependentes químicos? Não. É também para quem acha...nteressante. E pode ser indicada por uma desconhecida num papinho em frente de um espelho de banheiro.
"Por que você não me disse antes?", perguntou assim que ela saiu enrolada numa toalha.
"Porque você sempre está ocupado, nunca repara nos meus problemas."
"Foi por isso que você foi fazer terapia?"
"É, pode ser, não tinha pensado. Será que preciso resolver isso?"
"Resolver o quê?"
"Levar isso."
"Para onde?"
"Para o meu terapeuta."
"Seu terapeuta? Conheceu o cara hoje e já considera seu?!"
Então, tudo mudou no casamento que, acreditava ele, seguia pelo caminho seguro da normalidade, dos conflitos usuais e do número de relações sexuais em acordo com as estatísticas de vida saudável das revistas femininas.
Relação nada conturbada, comparada com outras ao redor.
"Será que preciso resolver isso?" passou a ser o argumento que encerrava toda discussão ou questionamentos, até os mais simples, como por que ela preferia pizza de massa fina, filme dublado, sorvete de frutas, shoyu na salada, se vestir de preto, dormir de lado, caipirinha de saquê, carne malpassada, ler com uma lapiseira na mão, começar as revistas pelo fim e os jornais pelo caderno cultural.
Não teve jeito. Um terapeuta entrou na vida do casal. E quantas vezes ele se pegou imaginando o que conversavam, quais eram as queixas e, pior, o que ele sugeria.
Será que o desgraçado coloca minhocas na cabeça dela, sugere aventuras extraconjugais, realizações de sonhos secretos? Será que ela conta detalhes íntimos, faz comparações com outros homens? Será que arrumou um confidente, com quem ridiculariza as fraquezas inerentes em todos os maridos?
"Que linha ele segue?", perguntou um dia na fila de cinema.
"Quem, meu terapeuta?"
"Quem poderia ser?"
"Ah, sei lá..."
Sei lá? Não existem mais linhas? Seria psicanálise? Usa divã? Estão associando os sonhos à relação dela com os pais? Freudiana, junguiana, lacaniana?
"Acho que é uma linha que ele mesmo criou", foi a resposta que só piorou o tormento.
Afinal, ele confiava nas correntes mais tradiças da psicanálise, anos e anos postas em prática, pouco empíricas, mas muito pesquisadas, debatidas, cujos arquétipos praticamente viraram senso comum.
"Ah, é uma terapia alternativa?", perguntou quando se apagaram as luzes do cinema.
"Pode-se dizer que sim."
"Por quê?"
"Eu precisava resolver umas questões pessoais."
"Que questões?!"
"Coisas minhas."
"E como é? Só você fala, ele anota, ficam frente a frente, dura uma hora, analisam sonhos, você fala de mim?"
"Shhhh!", gritou o idiota da fileira de trás, já que começara o filme.
Ele passou o filme todo se perguntando que questões seriam essas e quanto ele era responsável pela novidade. Será que ela era infeliz no casamento? Será que ela tinha outro e precisava debater com um especialista? Será que ela tinha outra? Será que ela vai se apaixonar pelo terapeuta?
Decidiu, sufocado por tantas perguntas, que não deveria se meter.
Relaxa. Muita gente faz terapia. Vamos ver, de repente, ela fica mais feliz, realizada, mais bonita, mais tarada. Esperar. Ver no que vai dar. Afinal, é apenas uma terapia.
Pense no pior: ela poderia entrar para uma seita amazônica ou um grupo de teatro alternativo ou um movimento de extrema-direita ou um fã-clube de uma banda heavy metal.
Será que ela está pensando em se separar?! Claro! Mulheres fazem terapia antes do divórcio, para se certificarem!
"Gostou do filme?", ela perguntou no estacionamento.
"Não sei. E você?"
"Preciso discutir com o meu terapeuta."
"Boa. Será ético você me contar se ele gostou?"
"Não sei. Por que você não faz terapia também? Aí, terá com quem conversar."
Entraram no carro. Ela olhou pelo espelhinho, retocou a maquiagem, ajeitou os cabelos. Um novo brilho nos olhos. Uma voz macia, diferente. Está tão mais... sexy. Que merda.
Ele concluiu: ela já está apaixonada pelo cara. OK, vou fazer terapia também, pensou. Quem sabe o desgraçado não me indica uma terapeuta. Bem gostosa.
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