segunda-feira, novembro 21, 2011

Mercado e responsabilidade - DENIS LERRER ROSENFIELD


O Estado de S.Paulo - 21/11/11


Há um componente propriamente moral no capitalismo, a saber: o fato de as pessoas confiarem em suas instituições e em seus governos. No momento em que os cidadãos percebem que os governos agem preferencialmente em proveito de determinados grupos de capitalistas, com privilégios e favorecimentos dos mais diferentes tipos, começa a prosperar um sentimento de desconfiança nesses governos. Estes passam a aparecer como francamente parciais, apenas voltados para atender a certos interesses. Desenvolve-se a ideia de que as instituições desses países são também viciadas, pois seriam moldadas para atender aos benefícios desses poucos privilegiados e escolhidos.

Ora, o capitalismo viceja onde aqueles valores são prezados e respeitados. Uma ideia central da economia de mercado reside na responsabilização individual e empresarial. Se uma empresa não faz bons negócios ou é irresponsável, cabe-lhe arcar com essas atitudes, sendo responsável pelo que faz. Contudo, se prospera a ideia de que algumas empresas, por seu tamanho, não podem quebrar, acaba se difundindo a concepção de que há empresas e empresas, umas sendo regidas pela competição e pela responsabilidade e outras, por privilégios e irresponsabilidades. O problema aqui é de monta, pois é minado um dos pilares mesmos de uma economia de mercado e da democracia.

Cria-se, assim, um ambiente favorável a ações socialistas contra a economia de mercado, visando, então, a cercear o direito de propriedade. O capitalismo vem a ser percebido como um sistema que desiguala oportunidades e cria favorecimentos. Ocorre uma perversão do capitalismo, de seu espírito, produzida por certos capitalistas e governos, que termina criando uma predisposição favorável a seu desaparecimento. Um caldo de cultura anticapitalista é produzido pelo próprio capitalismo, erodindo as suas bases morais.

Luigi Zingales (Capitalism after the crisis, em National Affairs) faz uma oportuna distinção entre forças pró-business e pró-mercado dentro da sociedade capitalista, uma a enfraquecendo e outra a desenvolvendo.

A primeira caracteriza-se por forças que lutam pelos mais diferentes tipos de privilégios e favorecimentos, baseados, por exemplo, na ideia de que certas empresas não podem quebrar, devendo os governos - logo, os contribuintes - contribuir para o seu resgate. Tais atitudes se baseiam no principio, se é que se pode utilizar esse termo, da irresponsabilidade moral. No momento dos lucros, dizem defender a economia de mercado; na hora dos prejuízos, procuram se amparar nos governos, desprezando os mesmos princípios do livre mercado que diziam defender.

Outro exemplo dessa atitude se encontra em favorecimentos nos financiamentos do tipo que são oferecidos pelo BNDES, que capta no Tesouro Nacional recursos que são remunerados a uma taxa inferior à dos financiamentos por ele concedidos. Ou seja, são os contribuintes que pagam para que determinados setores ou empresas sejam discricionariamente favorecidos por um banco que se apresenta como público. Outra face é o desenvolvimento - não só entre os capitalistas, mas entre os sindicatos de trabalhadores - do corporativismo, voltado especificamente para a concessão de privilégios. O corporativismo é a outra face do capitalismo de compadrio.

A segunda caracteriza-se pela primazia de um mercado impessoal, no qual, dada a sua natureza específica, não haveria lugar para favorecimentos particulares, quanto mais não seja, pelo fato de que não cabe ao governo interferir materialmente nos mercados. Digamos, para efeito de tornarmos mais clara a ideia, que o governo deveria ter, sobretudo, uma ação visando a assegurar a infraestrutura institucional, a que, precisamente, torna possível a impessoalidade dessas relações, a saber: o direito de propriedade, a validade dos contratos, a infraestrutura e a segurança jurídica. Ou ainda, do ponto de vista material, assegurar uma infraestrutura que favoreça a todos indiscriminadamente, como portos, rodovias, ferrovias e hidrovias.

O seu princípio, do ponto de vista moral, é a responsabilidade, cada um arcando com as consequências de suas ações, não cabendo transferência de responsabilidades. Maus negócios não são assegurados pelo Estado, mas de inteira responsabilidade dos que tomaram tais decisões, não cabendo ao contribuinte pagar por isso. As forças pró-mercado teriam, então, como contraparte a responsabilidade moral. Note-se que o governo teria naturalmente menos funções, pois ao não se imiscuir nos negócios e só regulando formalmente os mercados, seu espaço para a concessão de privilégios também diminui. Em consequência, reduz-se também o espaço onde floresce a corrupção.

A dimensão ética do capitalismo está na liberdade, na responsabilidade, na meritocracia, na recompensa do trabalho e do esforço, o que significa dizer que cada um deve arcar com as consequências de suas ações. Ou seja, não cabe a alguns ficar com os lucros e socializar os prejuízos, como tem sido o caso de grandes bancos, principalmente de investimentos, que foram salvos, dessa maneira, da crise atual. O que o governo dos EUA fez na crise foi salvar um setor baseado em forças pró-business e esse resgate terminou causando dano ao próprio capitalismo, pró-mercado, prejudicando a economia de livre mercado, a competitividade e a responsabilidade. Logo, não haveria empresas demasiado grandes para falirem, sendo essa, na verdade, uma bandeira pró-business, voltada para favorecer poucos, em nome de um sistema de livre mercado que essas mesmas forças pervertem.

As forças pró-business estão, mais particularmente, focadas na perversão moral do capitalismo, na abolição dos seus valores. O que se traduz na perda da adesão política ao capitalismo, que passa a ser visto como fonte de valores morais pervertidos.

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