terça-feira, setembro 06, 2011

CLÓVIS ROSSI - Do lado errado da história


Do lado errado da história 
CLÓVIS ROSSI
FOLHA DE SP - 06/09/11

Os Estados Unidos têm uma longa história de cooperar com tiranos como o ditador líbio, Muammar Gaddafi
Você tem todo o direito -até o dever- de indignar-se com a revelação de que os serviços secretos dos Estados Unidos e do Reino Unido cooperaram com o ditador Muammar Gaddafi.
Só não tem o direito de se surpreender. Os Estados Unidos, fora de suas fronteiras, ficaram incontáveis vezes do lado errado da história, para usar expressão do presidente Barack Obama. O lado certo seria o da democracia e do reinado das liberdades públicas de que, internamente, tanto se orgulham os EUA.
Na América Latina, então, o desempenho de Washington é realmente terrível. Quase dá para tomar como emblemática da ação norte-americana no subcontinente a frase atribuída ao então presidente Franklin Delano Roosevelt sobre o ditador nicaraguense Anastacio Somoza: "Ele pode ser um f. da p., mas é nosso f. da p.".
Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos cansaram-se de desestabilizar governos absolutamente legítimos, mas inconvenientes do ponto de vista ideológico, para instalar criminosos da estirpe dos Somoza. A lista é tão grande e tão conhecida que me dispenso de reproduzi-la aqui.
Basta mencionar o Chile de Allende, talvez o caso mais bem documentado nos anais do próprio Senado norte-americano de envolvimento da CIA em uma conspiração.
Acabou levando ao poder o general Augusto Pinochet, cuja única diferença com Gaddafi é que não falava árabe nem se alojava numa tenda de luxo em viagens ao exterior.
No mais, mereceria de qualquer presidente norte-americano do período a mesma descrição que Roosevelt aplicou a Somoza. A Guerra Fria, primeiro, e a "guerra contra o terrorismo", depois, serviram como explicação para alianças com o lado errado da história. Pegue-se o Afeganistão: os Estados Unidos ajudaram, até com armas, os talebans quando lutavam contra a ocupação soviética. Os talebans ganharam, e Washington se viu compelida a aliar-se ao ditador paquistanês Pervez Musharraf para combater o grupo fundamentalista, que dava abrigo a Osama bin Laden e a Al Qaeda.
O caso agora revelado mostra como é torpe uma política baseada em achar que o inimigo do meu inimigo é meu amigo. Pelas informações disponíveis, os serviços secretos ocidentais forneceram a Gaddafi informações de inteligência que suposta ou realmente levaram à captura de Abdul Hakim Belhadj, suspeito de terrorismo.
Gaddafi, em defesa de seu reinado, perseguia os inimigos de seus ex-inimigos (EUA e o Ocidente em geral), o que convinha a ambos os lados, princípios inteiramente à parte. Pois bem: agora Belhadj é um dos principais comandantes dos rebeldes que estão derrubando Gaddafi, com apoio dos Estados Unidos e do Reino Unido.
Só faltaria, para fechar a cruel ironia, que Belhadj funcione, na Líbia, como os talebans no Afeganistão. Talvez seja supina ingenuidade pretender que a política externa de um país seja coerente com os princípios que defende -e pratica- internamente. Mas tem se revelado alto demais o custo -financeiro, moral e de imagem- de aliar-se com regularidade a quem viola sistematicamente tais princípios.

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