Mancha no lenço branco
CLÓVIS ROSSI
FOLHA ONLINE - 22/06/11
Devo às "Madres de Plaza de Mayo" as únicas lágrimas vertidas durante o trabalho, em 48 anos de profissão.
Foi assim: as "Madres" manifestavam-se durante a ditadura argentina do período 1976/1983 todas as quintas-feiras. Lenços brancos à cabeça com o nome do filho desaparecido bordado, davam umas quantas voltas em torno do Obelisco da Plaza de Mayo, em frente à Casa Rosada, a sede do governo argentino. Hoje, há uma grade isolando a Rosada (os argentinos pronunciam "roçada"). Naquela época, nada.
Os correspondentes estrangeiros funcionávamos como uma espécie de escudo -- precário, é verdade, mas escudo -- para aquelas dignas senhoras e sua dor. Em tese, a repressão ou não haveria ou seria mais contida na presença de jornalistas estrangeiros (os locais nem precisavam ir, porque nada poderia mesmo ser publicado).
Reclamavam a volta de seus filhos desaparecidos, que todos sabíamos mortos, mas que elas se recusavam a aceitar a verdade, porque insistir no grito de "con vida los llevaron/con vida los queremos" era uma maneira de pressionar os militares a confessar o genocídio e de fazer o mundo ver o horror em que a Argentina mergulhara.
Um dia de 1983, Dia Internacional dos Direitos Humanos, as "Madres" decidiram inovar e ampliar a sua marcha para além da Plaza, pela avenida de Mayo, a que leva de um centro do poder (a Rosada) ao outro (o Congresso, naquela época fechado).
A ditadura, derrotada no ano anterior na Guerra das Malvinas, cambaleava e achou por bem impedir o acesso à praça. Se o poder lhes escapulia, pelo menos teriam que preservar o seu símbolo, o casarão que abriga a Presidência, e a área em torno.
Desci do metrô na avenida de Mayo e caminhava rumo à Plaza, tendo à frente uma senhora de rosto sulcado pelos anos e pela dor, lenço branco com o indefectível bordado à cabeça, passo firme apesar da idade. A uns 200 metros pouco mais ou menos da Plaza, um cordão de fornidos policiais, ombro a ombro, fechava a passagem completamente.
A senhora atirou-se, literalmente, sobre os policiais dizendo: "Deixem-me passar que tenho um encontro com meu filho".
Não pude conter as lágrimas ante o exemplo de compromisso da mulher com o filho que ela jamais encontraria. De fato, "con vida los llevaron", mas nem sem vida foram devolvidos. Que horror.
Conto essa história porque, 30 anos depois, as "Madres" quase me fizeram chorar de novo, desta vez pelos piores motivos. A Associação que as congrega está envolvida em um escândalo de suposto desvio de verba para a construção de casas populares, atividade a que um dos dois grupos em que se cindiu o movimento passou a se dedicar a partir do governo Néstor Kirchner.
O caso é escabroso porque os acusados são os irmãos Schoklender, autores de um crime impressionante também de 30 anos atrás: Pablo e Sérgio mataram pai e mãe, deixaram os cadáveres no porta-malas do carro da família e fugiram para Mar del Plata.
Presos, julgados e condenados, ganharam depois a liberdade por bom comportamento. Aí, Hebe de Bonafini, uma das fundadoras das "Madres" resolveu dar-lhes emprego na Associação Madres de Plaza de Mayo, justamente como gestores do programa habitacional (financiado pelo governo).
Parte do dinheiro sumiu. Os Schoklender têm iate e outros símbolos exteriores de riqueza.
Que De Bonafini tivesse um acesso de boa samaritana e empregasse dois parricidas, já é muito para o meu gosto. Trata-se de um tipo de animal tão perverso que a recuperação me parece impossível. Além disso, dona Hebe tornou-se uma revolucionária profissional, capaz de defender, por exemplo, o grupo terrorista basco ETA. Não entra na minha cabeça que um movimento nascido para defender a vida e os direitos humanos seja capaz de sancionar terrorismo.
Fico me lembrando de uma "boutade" espanhola, que diz: "CONTRA Franco, vivíamos melhor". Pois é, contra a ditadura os caminhos das "Madres" passavam com dor mas com glória pelas avenidas de Buenos Aires. Na democracia, parte delas se perdeu nos obscuros caminhos da mente humana. Triste.
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