O exemplo do vizinho
MALU GASPAR
REVISTA VEJA
País que mais avançou no ensino na última década, o Chile é um caso emblemático de como uma política duradoura, a salvo de trocas de poder, é decisiva - uma lição para o Brasil
Trajando uniformes impecáveis, 350 alunos da escola pública Ciudad de Frankfort, em Santiago, capital do Chile, perfilam-se diante da diretora no fim do recreio para entoar o hino nacional. Seguem para a sala de aula com notável entusiasmo. Não faz muito tempo. ali se amontoavam carteiras quebradas, os telhados caíam aos pedaços e imperavam tanto a indisciplina quanto o baixo nível acadêmico. Até a violência das gangues que dominam as imediações se fazia sentir nos corredores, por onde uma professora chegou a circular sob escolta policial depois de ser ameaçada de morte por um aluno. Desde 2007 nas mãos da diretora Haydee Inostroza, uma matemática de 52 anos com mestrado e MBA em gestão escolar, o colégio passou por uma transformação radical - não sem traumas. O quadro de professores foi alvo de uma faxina por meio da qual 70% saíram. e a escola passou a ser regida por ambiciosas metas e prêmios atrelados ao desempenho da equipe. No Chile, dividem-se as instituições de ensino em ruins, emergentes e boas. Palco de avanços que espantam pela velocidade. a Ciudad de Frankfort foi recém-alçada ao patamar mediano. Diz a diretora, dando o tom de uma obsessão que se espraia pelo país: "Nosso objetivo é estar entre os melhores nos próximos dez anos".
Na última década, ninguém avançou tanto em sala de aula quanto os chilenos. Eles se destacam na comparação com estudantes de 65 nacionalidades. inclusive os brasileiros. segundo revela um recente levantamento conduzido pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Tamanho ímpeto distancia o Chile da rabeira do ranking e do Brasil (reja o quadro na página 132 ) - um conjunto de dados que suscita pergunta inevitável: temos o que depreender do exemplo que se avizinha? Ainda que persistam alguns obstáculos que tornam o desafio brasileiro mais complexo - a começar pelo fato de o Chile contar com menos de um décimo da população do Brasil e reunir menos escolas que todo o estado de São Paulo -. a resposta é afirmativa, tais são a simplicidade dos princípios em que se ampara o modelo chileno e as características que unem os dois países. "Ao contrário de China e Coreia do Sul que empreenderam mudanças radicais em ditaduras. Brasil e Chile são democracias e precisam de um grau mínimo de consenso para ir em frente", observa Ilona Becskeházy, da Fundação Lemann, uma estudiosa do caso chileno.
O mérito do Chile foi aplicar com disciplina e persistência iniciativas de eficácia já testadas. com sucesso, em países desenvolvidos. Elas só funcionaram porque permaneceram de pé ao longo de duas décadas ininterruptas a salvo de trocas de poder, ideologias e ingerências políticas que costumam provocar retrocessos na área. No início dos anos 1990. governantes de diversos matizes ideológicos selaram uma espécie de pacto nacional, alçando a educação ao topo da agenda política, numa época em que o país acabara de sepultar a ditadura do general Augusto Pinochet. Com o ensino decadente e as escolas à míngua, procurava-se recuperar a excelência de um sistema que já fora modelo para os vizinhos. Para se ter uma ideia, entre as décadas de 20 e 50, o prestígio do sistema de ensino ali era tal que os técnicos chilenos rodavam vários países da América Latina treinando quadros ligados à educação. Nesse tempo, celebrizaram-se os grandes mestres (ou "maestros"). como os proeminentes poetas Gabriela Mistral e Pablo Neruda, ambos ganhadores de prêmios Nobel de Literatura e educadores de conduta exemplar. Essa deferência aos estudos é algo que começa a se vislumbrar só agora no Brasil - um fato que ajuda a entender o atraso de cerca de uma década dos brasileiros em relação aos chilenos.
O motor das mudanças chilenas se alicerça em uma premissa tão básica quanto eficaz: a meritocracia. Tal ideia é levada no Chile às últimas consequências - a ponto de gente como Maria Dolores Ormazabal, 57 anos de vida e 28 no ofício de professora, ganhar 30% mais que seus pares por se destacar no trabalho. Depois de mais de uma década de negociações com os sindicatos, todos os docentes chilenos passaram a ser submetidos a avaliações periódicas, que podem até sentenciar a demissão dos menos eficientes. "Antes, a escola era pautada por relações pessoais; hoje, e a competência que determina o destino dos profissionais", resume Maria Dolores, que faz breve balanço da própria trajetória: "Tudo indicava que estes anos próximos à aposentadoria seriam de marasmo, mas se tornaram os melhores de minha carreira" Os diretores também passam por criteriosa peneira. Um pré-requisito para que sejam contratados é a apresentação de um plano de gestão para a escola que pleiteiam comandar, tal qual numa empresa. Os mandatos, de cinco anos, só são renovados mediante bom desempenho, o que os deixa em permanente estado de vigilância. "Durmo com planilhas e relatórios debaixo do meu travesseiro", sintetiza Celinda Galindo, diretora de uma escola em Maipú, na região metropolitana de Santiago.
Outro traço marcante da reforma chilena é o pragmatismo com que se faz uso do dinheiro público. O Chile elevou o quinhão destinado à educação - de 2,5% para 6,4% do PIB desde 1990, enquanto o Brasil estacionou em 5% -, mas só libera certas verbas em troca de resultados concretos, mensuráveis. Um deles é elementar: o comparecimento dos alunos à sala de aula. O segundo é que a escola siga em trajetória ascendente, segundo indicadores objetivos, ano após ano. Os recursos têm sido canalizados para o essencial. As escolas mantidas com orçamento oficial - algo na casa de 95% das escolas do país contam hoje com turno de oito horas. É uma das características que aproximam o Chile dos países mais ricos e bem-sucedidos na educação.
Num contexto de estabilidade econômica e política e com a perspectiva de ombrear-se, até 2020, com os indicadores socioeconômicos das nações mais ricas, o Chile tem na educação um ingrediente crucial em seu modelo de desenvolvimento. De duas décadas para cá, o contingente de universitários que se preparam para entrar no mercado subiu espantosamente: o número dobrou. Eles contribuem para que a exportação de serviços que demandam alta qualifi-
cação, concentrados na área de tecnologia da informação (TI), já produza cifras semelhantes às da tradicional indústria de vinhos. E nesse cenário que começa a surgir um gênero específico de investidor estrangeiro, à caça dos cérebros chilenos. "Entre os sete centros de pesquisa que o Yahoo! possui no mundo, um está aqui, graças à grande oferta de talentos" explica o diretor Mauricio Marín. Tal centro está instalado na Universidade do Chile, a número 1 do país, próximo ao laboratório de outros gigantes do mundo digital, como a americana Cisco. O bem-sucedido casamento selado ali entre meio acadêmico e mercado tem redundado em mais inovação - e patentes (veja o quadro na página 132).
Na 44ª colocação de uma lista de 65 países, o Chile tem. evidentemente, um longo caminho a percorrer em direção ao topo do ranking da excelência. O abrangente levantamento da OCDE, no entanto, dá várias indicações de que o rumo para chegar lá está acertado. Um claro sinal disso é que a diferença entre os alunos mais pobres e os mais ricos está se reduzindo no Chile - caracteristica comum a todos os países de elevado padrão acadêmico. Tais avanços se traduzem em uma colecão de boas histórias, como a que conta o estudante Ignacio Gonzalez. de 14 anos. As lembranças mais vivas que traz do período escolar são de quando ele e os colegas escalavam um muro no fundo do pátio, para escapar da aula. Hoje. o rapaz diz: "Pela primeira vez na vida.. ir à escola passou a ser um prazer".
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