As pompas do mundo
DANIEL PIZA
O Estado de S.Paulo - 01/05/11
Cobertura extensiva e intensiva nos canais de notícias na TV; revistas semanais falando da "princesa encantada" e de um "sistema que dá certo há mais de mil anos"; Gloria Kalil comentando ao vivo na Globo; intelectuais republicanos como Timothy Garton Ash e Gilles Lapouge reconhecendo a magia da "continuidade" ou "permanência" para as massas; um casal de tigres sendo batizado de William e Kate; filmes como A Rainha sendo reexibidos e O Discurso do Rei ganhando Oscar; os EUA acompanhando em peso como se o casamento fosse entre americanos; a nova princesa lançando modas como o "fascinator", espécie de casquete moderna; Elton John, o amigo de Diana, presente na cerimônia sem suas extravagâncias do palco - afinal, o que é tudo isso? Não me surpreende a curiosidade, mas a intensidade. Precisei buscar no saudoso Otto Lara Resende o título acima. O que o mundo vê além daquelas pompas todas?
A explicação usual diz que se trata do velho conto de fadas. Na frase de uma amiga, "é a realização do sonho de muita gente", por eles serem "bonitos, jovens, ricos, elegantes, apaixonados" e, ainda por cima, se casarem com "carruagem e coroa de diamante". Apesar do consumismo e do "fast fashion", eles exibem privilégios e luxos realmente exclusivos, inacessíveis a mortais comuns, salvo a "eleita" Kate Middleton. Também parecem atrair uma juventude conservadora crescente, que quer resgatar tradições, que defende o valor dos rituais (não basta usar aliança no dedo; é preciso tatuar o nome do amado no corpo, mesmo que depois se separe), que acha "lúdico" acompanhar a sorte dos que não precisam penar por dinheiro. Mesmo quem tem marido apaixonado, vida confortável, filhos adoráveis e bom emprego dá mais valor ao que não tem; sonha com os diamantes, a juventude e os não-problemas de Kate. E o fato de ela optar por um estilo simples só aumenta a admiração por sua fortuna.
Mas isso tudo mostra que há algo mais, que transcende a mera curiosidade pelo glamour monárquico. O evento veio se encaixar em nossa era de celebridades, em nossa era People, na qual as aparências importam mais que tudo. É a ilusão de perfeição coroada. É a encarnação do medo de enfrentar as responsabilidades, do medo de envelhecer, do medo de não ser desejável. É um sintoma do mal atual, o mal da idolatria, em que os famosos parecem pertencer a uma corte, parecem ser mais especiais e interessantes do que de fato são, parecem livres para fazer o que quiserem. Ou, como já chamei, é a "imagocracia", o poder da imagem, que em cidades grandes se traduz na sede pelo status que um carro, uma grife e uma plástica (bem-feita, não essas que fazem bocas de pato nas peruas) podem dar. Vivemos numa idade teatral - vide as cantoras, mais e mais performáticas - em que o furor narcisista menospreza as qualidades interiores. As utopias coletivas morreram; as individuais nunca estiveram tão vivas.
Rodapé. Do livro A História da (In)Felicidade, de Richard Schoch (Record): "O que está longe de ser trivial é a crença perturbadora e que prevalece com demasiada frequência de que, para encontrar a felicidade, devemos dar as costas a tudo o que é familiar, forjar uma nova vida, viajar para terras distantes, realizar feitos extraordinários, trocar um presente sombrio por um futuro fantástico ou torcer para aparecer uma estrela auspiciosa. Esforços desse tipo são destrutivos, porque desperdiçam a oportunidade que se encontra sempre diante de nós: tornar-se não outra pessoa, porém uma versão melhor da pessoa que somos. (...) Embora os gurus da autoajuda, os consultores de estilo e outros fornecedores de autoestima possam afirmar o contrário, tornar-se feliz não é um tipo de escolha de consumo deliberada".
De la musique. Cobramos mais de quem mais gostamos, mas às vezes exageramos dando o tom errado à frase "mais do mesmo". Por exemplo, o novo CD do Radiohead, The King of Limbs, tem apenas oito canções, todas na mesma linha dos últimos trabalhos, e não por acaso a dancinha de Thom Yorke em Lotus Flower gerou mais comentários. Mas ouça Codex, de uma tristeza agônica, e diga quem faz igual. Idem para Elvis Costello em National Ransom. Costello deu cano no show que faria no Brasil, mas o CD vale todas as audições porque conseguiu misturar sua vertente meio country e bem-humorada (com T-Bone Burnett) com a cancionista, como em You Hung the Moon e One Bell Ringing. E quantos letristas são capazes de escrever "I lost you/ You slipped from your costume/ Like an actress in this tragedy" (Eu te perdi/ Você escorregou de seu vestido/ Como uma atriz nesta tragédia)?
Já de dois cantores compositores brasileiros que admiro, Tiê e Marcelo Camelo, não se pode dizer o mesmo a respeito dos novos CDs, respectivamente A Coruja e o Coração e Toque Dela. Senti falta da tristeza autoirônica de Tiê no disco anterior, apesar de Te Mereço, e tudo soa voltado a um público mais juvenil, com voz dobrada e andamentos únicos. A única exceção, até pelo contraste, é a versão mourisca do clássico brega Você Não Vale Nada. Embora um tanto mais elaborado em termos instrumentais, Camelo também está singelo demais nas novas canções, de poucos versos, com alguns achados como "Trago nestes pés o vento pra te carregar daqui". Entre as que lembram um pouco os bons tempos de Los Hermanos, estão Despedida e Acostumar.
Novidade de fato é a inglesa Adele, no CD de nome 21. Ela começa com pegada bem blues, em Rolling in the Deep, mas também canta canções de amor como, ora, Lovesong (com versos eficientes como "Whenever I"m alone with you/ You make me feel like I am free again") e Turning Tables. Mas é a última canção, Someone Like You, que junta todos esses atributos e atravessa o mundo com sua beleza. Todo mundo que já perdeu um amor ou está com medo de perder se emociona com a melodia, a letra e a voz de Adele nessa canção.
La isla perdida. Raúl Castro aprovou mais um projeto de reformas, que inclui abertura ao setor privado, corte de subsídios e descentralização estatal. A compra e venda de casa por particulares também foi aprovada, e Fidel Castro deixou o comando do Partido Comunista. Estive em Cuba em 2000 e vi claramente a existência de dois mundos, o da fantasia revolucionária - que é comum ouvir dizer que apresenta estatísticas boas de saúde e educação, mas a educação é ideológica e os dados não são críveis - e o da realidade, com carência de produtos, em que o turismo se torna a única alternativa para muita gente, regido em dólares. O congresso também quer terminar com esse câmbio duplo e "levar em conta as tendências do mercado". Há muitas e muitas dúvidas sobre o futuro, mas aí está: é o início do fim do socialismo cubano.
As dúvidas são sobre o modelo que querem adotar. Estariam pensando numa "linha chinesa", ou seja, num capitalismo dirigido, com um partido político único e pouca liberdade de expressão? Mas os chineses têm uma população e um país enormes e uma cultura asiática de disciplina, de esforço nos estudos e firmeza nos negócios, a ponto de agora buscarem a geração de tecnologia e não mais a "maquiatura" de produtos alheios. Cuba é uma ilha de belezas tropicais e descontração musical, na qual o turismo será mais e mais a principal fonte de renda. O povo, apesar da lavagem cerebral que a propaganda e a repressão exerceram por 50 anos, pode muito bem querer mais liberdades civis e políticas, uma democracia ao estilo ocidental. Vamos aguardar os próximos capítulos, mas algo me diz que o gradualismo de Raúl pode não conter tudo.
Por que não me ufano (1). Achei curiosos os resultados da pesquisa da Ipsos sobre crenças religiosas. O Brasil é o terceiro país onde mais se acredita em Deus (84% dos entrevistados), atrás apenas de Indonésia (93%) e Turquia (91%). A média mundial é 51%. O Brasil também é o terceiro onde mais se acredita que a vida pós-morte não tem nem inferno nem pecado (32%), seguindo México (40%) e Rússia (34%), e o segundo onde mais se acredita em reencarnação (12%), atrás da Hungria (13%). Outros 28% acreditam que vão para paraíso ou inferno. O país é o quarto em crença no criacionismo (47%, contra 28% da média mundial), à frente inclusive dos EUA (40%). No Brasil, só 3% não acreditam em entes ou forças superiores (no mundo, 18%; na França, 39%) e apenas outros 4% têm dúvidas (no mundo, 17%).
Em outros termos, o Brasil talvez seja o país menos materialista ou secular do mundo. Somando as três crenças (Deus, vida pós-morte e criacionismo), atinge uma combinação de resultados que nenhum outro atinge. A esmagadora maioria nem sequer aceita a hipótese de que não existem fenômenos sobrenaturais e de que ao morrer vão desaparecer totalmente.
Por que não me ufano (2). O que os brasileiros são barraqueiros dentro de casa, são cordeirinhos fora. Se você abre uma página de política, lê absurdo atrás de absurdo e, aí, se arranja a desculpa de que não dá para ficar se indignando o tempo todo, que isso não vai levar a nada. Mas por que então não selecionamos determinados movimentos e não vamos às ruas protestar? Por exemplo, poderíamos lançar o "Fora, Sarney", cujos aliados e familiares dominam o Conselho de Ética, os mesmos que violaram a ética várias vezes com atos secretos e nepotismos mil. Ou então poderíamos ir à sede do PT com faixas "Delúbio não volte", para impedir que o operador do esquema do mensalão seja perdoado por um partido que ficou 20 anos prometendo mais ética no poder. Não estamos em ano de eleição, logo ninguém poderia alegar motivações partidárias. Ou a sociedade fala ou seus representantes não a representam.
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