Coisas do Brasil
ADRIANO PIRES e ABEL HOLTZ
O Estado de S. Paulo - 18/05/2011
Tem sido lugar-comum na recente história congressual brasileira que um projeto de lei, no curso de sua análise e efetivação como lei, sofra a inclusão de artigos (enxertos) que não necessariamente estão ligados ao tema que demandou na origem a sua edição. Esse fato gerou, na legislação afeta ao setor elétrico, um emaranhado de regras esparsamente localizadas e muitas vezes sem nenhuma inter-relação entre elas, de sorte que é necessário aos interessados consultar diferentes leis, decretos, regulamentos e resoluções para se assegurarem das assertivas a defender.
Um dos juristas que conhece bem a matéria costuma dizer que a legislação do setor elétrico brasileiro não é nem uma colcha de retalhos, porque neste caso eles costumam estar costurados uns aos outros. Na legislação do setor, diferentes leis, decretos, regulamentos e resoluções podem ser considerados retalhos soltos e dispersos. E, por paradoxal que seja, existe uma lei, criada há mais de dez anos, que define quais regramentos as leis devem atender para serem proclamadas. Nesses casuísmos do setor elétrico e na pressa de configurar "uma solução", vieram a considerar a energia a ser comercializada pela usina nuclear como energia de reserva.
Ora, o conceito de energia de reserva e sua estruturação comercial na Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE) são advindos do fato de as energias eólica e de biomassa terem características muito próprias de sazonalidade ou intermitência (falta de ventos). No caso da energia nuclear, essa fonte funciona, na base, sem interrupções - salvo as programadas - e, portanto, não há nem sazonalidade nem calmarias.
O fato de a comercialização da energia considerada como de reserva ser feita na CCEE a obriga, e a seus associados, a suportar os riscos financeiros advindos desta operação de compra e venda. No caso das atuais nucleares, "a coisa está passando aparentemente sem maiores problemas". Mas os riscos são enormes para seus associados.
Cabe lembrar que, se a tendência for as empresas privadas assumirem o papel de concessionárias de usinas nucleares a ser construídas - e mesmo as novas nucleares em análise de implantação -, que elevarão o montante de energia a ser produzida por essa fonte, seria lógico que fossem implantados desde já leilões específicos e que fosse abandonada a ideia de mais um casuísmo representado pela consideração da energia produzida como de reserva. Na defesa disso poderíamos também considerar que as empresas privadas que irão explorar a concessão de nucleares não poderão ter como garantidora da operação uma CCEE, que é uma câmara de comercialização, e sim o conjunto das distribuidoras que nos leilões se constituem nos compradores da energia, oferecendo assim uma garantia de fluxo de pagamentos que o histórico dos registros da CCEE, até pouco tempo, indicava uma adimplência desses contratos de compra e venda superior a 95%, o que se constitui numa garantia superior àquela que a energia de reserva poderia oferecer, na forma que hoje está estruturada.
O tsunami no Japão, que causou grandes estragos em usinas nucleares, trouxe de volta a discussão da necessidade de construção de mais usinas. O fato é que o mundo e o Brasil precisarão cada vez mais de energia elétrica e não poderão abrir mão de nenhuma fonte. Certamente, muitas novas exigências serão feitas para tais construções, o que é correto. Mas a qualidade de uma fonte como a nuclear, que não gera CO2 nem metano (CH4), terá de ser levada em conta.
No Brasil, segundo o próprio governo, a energia oriunda de hidrelétricas terá só mais 20 anos pela frente. Portanto, é dever de casa diversificar a matriz elétrica brasileira, e neste caso não dá para abrir mão da nuclear. Não propomos o tout nucléaire, como os franceses, mas um pouco mais de nuclear é fundamental para garantir o abastecimento do mercado brasileiro. E, para que isso ocorra com a presença de capital privado, é preciso estabelecer uma regulação com conceitos claros e apropriados para a energia nuclear, sem casuísmos.
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