Silêncio conveniente
MIRIAM LEITÃO
O GLOBO - 10/03/11
É particularmente interessante a expressão “governo chamado de militar”, no documento que as Forças Armadas enviaram ao ministro da Defesa contra a Comissão da Verdade. Quer dizer que um governo que por 21 anos instalou generais na Presidência e julgou seus opositores civis em tribunais militares era então um governo civil? Isso é novidade.
O documento divulgado ontem pelo trabalho do repórter Evandro Éboli, de O GLOBO, revela que os comandantes das três forças consideram que o passado passou, e que qualquer investigação sobre torturas e circunstâncias das mortes dos opositores políticos seria “abrir ferida na amálgama nacional.” Diz ainda que este tipo de investigação “pode provocar tensões e sérias desavenças.” Os militares argumentam que os fatos se passaram há mais de 30 anos, que pessoas envolvidas já morreram e documentos e provas perderam-se no tempo e portanto nada deve ser investigado.
De fato, o Brasil perdeu tempo demais. Logo após o último general sair do Planalto, há 26 anos, era difícil por dois motivos. Primeiro, o medo imposto por eles de que qualquer mexida nessa ferida fosse entendida como uma provocação à qual reagiriam. Depois, o presidente que por fatalidade assumiu, José Sarney, tinha sido um fiel servidor do regime. As ambiguidades desse início adiaram o encontro com a verdade daquele período sombrio; depois, os presidentes que se seguiram vacilaram e aceitaram o mesmo veto que agora as Forças Armadas tentam impor à Comissão da Verdade. Existe algum argumento para que não se tente saber em que circunstâncias morreu o deputado Rubens Paiva? Ou como foi morto o jovem Stuart Angel? Como e de que forma foi morto Vladimir Herzog?
O corpo do operário Manoel Fiel Filho, após ser preso, foi entregue à família com sinais visíveis de tortura e com a ordem de que fosse enterrado rapidamente, sem perguntas, sem divulgação. Tantos outros simplesmente desapareceram sem que se tenha qualquer vestígio. Por que estamos proibidos de perguntar como morreram? Por que isso iria ferir a “amálgama” nacional? Se é verdade que os documentos se perderam, por que então as Forças Armadas querem evitar o anonimato para quem entregar documentos ou der depoimentos esclarecedores? No texto, os comandantes militares consideram que uma das razões para não se olhar para este passado é que “o governo não foi derrubado pelas forças políticas, mas ensejou lenta e gradual transição e devolução do poder aos civis.”
Essa versão parcial faz pouco da longa resistência, anula a luta de bravos como Mário Covas, Ulysses Guimarães, tantos outros que nunca aceitaram o arbítrio, mesmo sob riscos. Isso apaga da História os milhões que foram para as praças na Campanha das Diretas. Elimina a habilidade da oposição de ir no próprio colégio eleitoral, criado pelo governo militar, e lá arrancar a vitória de Tancredo. Esta versão de que a democracia foi apenas uma concessão ofende os fatos e a memória. Sim, os militares fizeram um lento afrouxamento das piores leis, mas até o presidente Ernesto Geisel, que tem boa imagem por ter enfrentado a linha dura, fechou o Congresso e governou com o AI-5 até primeiro de janeiro de 1979, quando faltavam apenas dois meses e meio para terminar seu período de governo. Esse trecho do documento, de que eles entregaram o poder espontaneamente aos civis, não conversa com o outro, em que eles se referem àquele período com a expressão “governo chamado de militar.” Como a parte em que eles dizem que é legítimo “as famílias buscarem seus entes queridos” não conversa com a parte que discorda da criação da Comissão da Verdade.
A quem as famílias perguntarão pelos seus entes queridos se, como diz o documento dos comandantes militares, tudo isso é passado, no qual não se deve mexer para não ferir a paz nacional? Há ruas no Brasil — em São Paulo, por exemplo — que se chamam 31 de março; a termelétrica de Candiota ainda se chama presidente Médici. Ainda se ensina nos 12 colégios militares às crianças e adolescentes que não houve ditadura militar no Brasil, e que as cassações e a censura foram necessárias por causa da intransigência da oposição, como informou a “Folha de S.Paulo” no ano passado. Alguns se perguntam se essas informações resgatadas vão levar ou não a processos contra os responsáveis.
Ouvido, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou que a Anistia apagou os crimes. Este aspecto da polêmica está, portanto, encerrado. Acho que os militares têm razão em dizer que é preciso saber também dos chamados justiçamentos executados por alguns grupos de esquerda. Eles usam o argumento como chantagem, mas é de fato necessário incluir no mesmo rol de fatos a buscar. Inaceitável é ainda hoje haver o veto dos militares a que uma comissão busque informações sobre pontos nebulosos do nosso passado recente. Os comandantes militares de hoje não estão comprometidos com os atos cometidos naquele período, mas ao se empenharem tanto em encobrir o que seus antecessores fizeram comprometem a instituição como um todo. Essa tendência de nada apurar, tudo esquecer, lembra a “astuta amnésia” de que falou no artigo de ontem o jornalista Elio Gaspari, sobre outro pedaço infeliz da nossa história, soterrado para não comprometer a versão de que tudo foi suave no Brasil, da escravidão à ditadura.
O documento divulgado ontem pelo trabalho do repórter Evandro Éboli, de O GLOBO, revela que os comandantes das três forças consideram que o passado passou, e que qualquer investigação sobre torturas e circunstâncias das mortes dos opositores políticos seria “abrir ferida na amálgama nacional.” Diz ainda que este tipo de investigação “pode provocar tensões e sérias desavenças.” Os militares argumentam que os fatos se passaram há mais de 30 anos, que pessoas envolvidas já morreram e documentos e provas perderam-se no tempo e portanto nada deve ser investigado.
De fato, o Brasil perdeu tempo demais. Logo após o último general sair do Planalto, há 26 anos, era difícil por dois motivos. Primeiro, o medo imposto por eles de que qualquer mexida nessa ferida fosse entendida como uma provocação à qual reagiriam. Depois, o presidente que por fatalidade assumiu, José Sarney, tinha sido um fiel servidor do regime. As ambiguidades desse início adiaram o encontro com a verdade daquele período sombrio; depois, os presidentes que se seguiram vacilaram e aceitaram o mesmo veto que agora as Forças Armadas tentam impor à Comissão da Verdade. Existe algum argumento para que não se tente saber em que circunstâncias morreu o deputado Rubens Paiva? Ou como foi morto o jovem Stuart Angel? Como e de que forma foi morto Vladimir Herzog?
O corpo do operário Manoel Fiel Filho, após ser preso, foi entregue à família com sinais visíveis de tortura e com a ordem de que fosse enterrado rapidamente, sem perguntas, sem divulgação. Tantos outros simplesmente desapareceram sem que se tenha qualquer vestígio. Por que estamos proibidos de perguntar como morreram? Por que isso iria ferir a “amálgama” nacional? Se é verdade que os documentos se perderam, por que então as Forças Armadas querem evitar o anonimato para quem entregar documentos ou der depoimentos esclarecedores? No texto, os comandantes militares consideram que uma das razões para não se olhar para este passado é que “o governo não foi derrubado pelas forças políticas, mas ensejou lenta e gradual transição e devolução do poder aos civis.”
Essa versão parcial faz pouco da longa resistência, anula a luta de bravos como Mário Covas, Ulysses Guimarães, tantos outros que nunca aceitaram o arbítrio, mesmo sob riscos. Isso apaga da História os milhões que foram para as praças na Campanha das Diretas. Elimina a habilidade da oposição de ir no próprio colégio eleitoral, criado pelo governo militar, e lá arrancar a vitória de Tancredo. Esta versão de que a democracia foi apenas uma concessão ofende os fatos e a memória. Sim, os militares fizeram um lento afrouxamento das piores leis, mas até o presidente Ernesto Geisel, que tem boa imagem por ter enfrentado a linha dura, fechou o Congresso e governou com o AI-5 até primeiro de janeiro de 1979, quando faltavam apenas dois meses e meio para terminar seu período de governo. Esse trecho do documento, de que eles entregaram o poder espontaneamente aos civis, não conversa com o outro, em que eles se referem àquele período com a expressão “governo chamado de militar.” Como a parte em que eles dizem que é legítimo “as famílias buscarem seus entes queridos” não conversa com a parte que discorda da criação da Comissão da Verdade.
A quem as famílias perguntarão pelos seus entes queridos se, como diz o documento dos comandantes militares, tudo isso é passado, no qual não se deve mexer para não ferir a paz nacional? Há ruas no Brasil — em São Paulo, por exemplo — que se chamam 31 de março; a termelétrica de Candiota ainda se chama presidente Médici. Ainda se ensina nos 12 colégios militares às crianças e adolescentes que não houve ditadura militar no Brasil, e que as cassações e a censura foram necessárias por causa da intransigência da oposição, como informou a “Folha de S.Paulo” no ano passado. Alguns se perguntam se essas informações resgatadas vão levar ou não a processos contra os responsáveis.
Ouvido, o Supremo Tribunal Federal (STF) considerou que a Anistia apagou os crimes. Este aspecto da polêmica está, portanto, encerrado. Acho que os militares têm razão em dizer que é preciso saber também dos chamados justiçamentos executados por alguns grupos de esquerda. Eles usam o argumento como chantagem, mas é de fato necessário incluir no mesmo rol de fatos a buscar. Inaceitável é ainda hoje haver o veto dos militares a que uma comissão busque informações sobre pontos nebulosos do nosso passado recente. Os comandantes militares de hoje não estão comprometidos com os atos cometidos naquele período, mas ao se empenharem tanto em encobrir o que seus antecessores fizeram comprometem a instituição como um todo. Essa tendência de nada apurar, tudo esquecer, lembra a “astuta amnésia” de que falou no artigo de ontem o jornalista Elio Gaspari, sobre outro pedaço infeliz da nossa história, soterrado para não comprometer a versão de que tudo foi suave no Brasil, da escravidão à ditadura.
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